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  • Foto do escritorFernando Quintanilha Namur

Usando a Ucrânia para dividir a Eurásia

Atualizado: 7 de ago.


Como o conflito na Ucrânia prejudica, sobretudo, a Europa e por que essa pode ter sido a jogada geopolítica de mestre dos EUA

É curioso notar como o conflito na Ucrânia desencadeou alardes sobre a Rússia e reavivou sentimentos nostálgicos da Guerra Fria com evidente facilidade. Porém, em que pese a OTAN ser mencionada com frequência, aparentemente há uma dificuldade generalizada em enxergar as reais motivações e implicações desta guerra, em um objetivo mais amplo de inibir a integração Euroasiática.


Precedentes da Guerra


Desde 2009 o governo do então presidente Viktor Yanukovych demonstrou a pretensão de se aproximar da União Europeia (UE), propondo um acordo de livre comércio com vistas a participar do bloco de forma integral. No entanto, no contexto da crise financeira de 2008, a UE ofereceu em contrapartida um empréstimo ao FMI vinculado a um plano de austeridade fiscal e econômica, ao moldes do exigido à Grécia, e um convite à OTAN.


Ora, a Europa basicamente respondeu de maneira colonialista: se deseja fazer parte da UE, deve, primeiro, se submeter econômica e militarmente. Na sequência, Moscou ofereceu um empréstimo similar, sob condições infinitamente mais favoráveis e melhores preços no gás exportado russo, do qual a Ucrânia dependia. Yanukovych decidiu pela opção mais sensata naquele dado momento e acabou por postergar as irracionais e custosas ofertas europeias.


Naquela oportunidade, foi diagnosticado que a Ucrânia tendia à influência ocidental, isto é, havia uma possibilidade de cooptar a Ucrânia. Não à toa, a pesquisadora Iryna Solonenko pontuou que os Estados Unidos promoviam investimentos diretos em organizações da sociedade civil ucraniana por meio da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (USAID) e pelo Fundo Nacional de Endowment para a Democracia (NED) há décadas.


Segundo pesquisa do jornalista estadunidense Mark Ames, grupos de extrema direita ucranianos receberam centenas de milhares de dólares dos Estados Unidos por meio dos seus programas internacionais de “promoção da democracia”.


Já em 2013, diante da negativa de Yanukovych para o empréstimo do FMI e a subsequente parceria com a Rússia, os protestos da extrema direita eclodiram, sob a bandeira de exigir os acordos com a UE. Nesse contexto, um grupo em especial se destaca, o Svoboda, que ao final viria a se tornar um partido político de extrema-direita.


O Svoboda e outros grupos logo partiram para posturas violentas, com ataques durante atos, tiroteios em manifestações, e ataques a unidades policiais, sobretudo na cidade de Lviv, que concentrou as operações logísticas e paramilitares inicialmente. As operações em Lviv organizaram verdadeiras milícias que construíram um cenário de guerra no país, tomando a capital com irremediáveis manifestações violentas, ocupando edifícios e entrincheirando as ruas.


Em 2014 a insurreição chegou a uma conclusão, com a expulsão de Viktor Yanukovych do país, após intensos meses de conflitos armados entre os manifestantes “pró-ocidentais” e as forças de segurança nacional. Em eleições convocadas, foi eleito Petro Poroshenko, um bilionário ucraniano que levantou as máximas neofascistas “exército, língua e fé”. Neste mesmo ano, o Estado ucraniano iniciou a campanha militar no Donbass, no extremo leste do país, perseguindo falantes do russo. A operação rapidamente escalou para um massacre, e, na sequência, para uma guerra civil.


Em fevereiro de 2014 a Rússia enviou forças militares à Crimea, em setembro negociou o Protocolo de Minsk, firmando um cessar fogo e caminhos para maior autonomia na região do Donbass. Concomitantemente, anexou a península da Crimea, sob referendo realizado em março daquele ano e passou a denunciar que a OTAN sustentava financeira e politicamente a Guerra na Ucrânia, ao passo que ameaçava a Rússia e infringia os acordos de Minsk.


Somente até agosto de 2014, mais de 720 mil ucranianos habitantes do Donbass se refugiaram na Rússia fugindo das forças de Kiev, segundo a Acnur. Em fevereiro de 2022 a Rússia decidiu enviar forças militares ao Donbass, dando início à Guerra declarada com Kiev.


O que está em jogo na Ucrânia?


Poucos meses após o início da campanha militar russa, no dia 26 de setembro de 2022, o Nord Stream (gasoduto submarino que conecta Rússia e Alemanha) foi bombardeado próximo à Suécia no Mar Báltico. O ataque está sendo lentamente investigado, e com muita preguiça, apesar do alarde causado pelos corpos diplomáticos tanto da Rússia como da China na ONU.


Segundo investigações do jornalista Seymour Harsh, os ataques foram realizados sob ordens de Joe Biden. Esse atentado é um sinal extremamente importante para corrobar as linhas que escrevo abaixo, e, no entanto, a notícia foi pouco comentada em toda a imprensa ocidental.


Um inofensivo balão chinês fez muito mais fama alguns meses depois. O que se sabe sobre o atentado é que ele só poderia ser executado por uma nação, isto é, por uma força militar organizada com um arsenal específico e uma inteligência capilar o suficiente para programá-la com precisão. Nada sobre o ocorrido faz crer que se trata de um acidente ou que possa haver alguma motivação que não estritamente geopolítica. Aliás, não restam dúvidas sobre a participação de Washington no episódio.


Veja bem, todos os fatos que estou reunindo neste artigo indicam que há uma estratégia geopolítica de Estado (isto é, independentemente do governo eleito), dos Estados Unidos da América, em impedir o avanço da integração econômica e política Euroasiática.


O panorama é de que os EUA estão lentamente perdendo poder global comparativo em face do desenvolvimento das nações emergentes, sobretudo China, Índia, Brasil e Rússia. O ritmo de crescimento e desenvolvimento econômico, aliado às condições demográficas e disponibilidade de recursos naturais nestes países representam uma ameaça à hegemonia unipolar que os EUA exercem no mundo desde a Segunda Guerra Mundial.


Neste ínterim, está em curso um processo acelerado de transferência do pólo econômico global do Atlântico Norte para a Eurásia. Às vezes não nos damos conta de que a Europa e Ásia formam naturalmente um único bloco continental, sendo a divisão apenas em bases culturais e políticas, ou seja, artificial.


Com o desenvolvimento acelerado das economias do sudeste asiático e o domínio das tecnologias de transporte terrestre, configura-se um cenário em que seria possível imaginar uma integração Euroasiática de fato, por via terrestre (principalmente ferroviária, mas também, de dutos e fios) entre China, passando pela Rússia, e Europa ocidental. Uma conexão ferroviária Berlim-Beijing, passando por Moscou, movimentando toda sorte de mercadorias de maneira segura, previsível e barata seria avassaladora para os produtos americanos.


As duas principais conexões para essa rede de infraestrutura e acesso a mercados e trocas consiste na integração entre Rússia e Alemanha, notadamente nos setores de transporte e energia (no qual a Rússia é potência global por deter algumas das maiores reservas globais de petróleo e gás natural, enquanto que a Alemanha é grande consumidora) e entre Rússia e China, principalmente nos setores de transporte, também energia, e financeiro-comercial.

O acesso rápido e barato à matriz energética russa pela Alemanha consistiria em uma enorme vantagem estratégica para sua indústria, que já está na fronteira tecnológica mundial. Isto é, a conexão da Rússia com a Alemanha seria mutuamente benéfica e estratégica.


Não sejamos ingênuos, foi projeto similar de integração Euroasiática no contexto do imperialismo europeu de princípios do século 20 que deu origem à Primeira Guerra Mundial, quando a Alemanha estava em vias de construir o gasoduto Berlim-Bagdá na sua saga por energia. Foi também, durante a Segunda Guerra Mundial, que a sanha germânica pelos recursos naturais russos acabou por ser o fim de Hitler perante o Exército Vermelho.


Agora, no século 21, a Alemanha estava prestes a concretizar, desta vez por via pacífica, seu acesso à energia barata asiática. O Nord Stream 2 teria a capacidade de transportar um volume estratosférico de gás natural em velocidade e segurança ímpares, impulsionando a cadeia produtiva da potência europeia e enriquecendo o vizinho do Leste. Porém esse projeto acendeu um alerta vermelho irremediável em Washington.


Na sequência dos acontecimentos, adveio o Brexit, primeiramente, uma espécie de anunciação. Foi por meio do Brexit que o Reino Unido foi preparado, sem dúvidas conscientemente, do breve futuro de instabilidade político-econômico-militar que o conflito da Ucrânia traria. Não apenas, o Brexit está amparado na percepção pela Grã-Bretanha de que seu poder se concentra no Atlântico Norte.


Ou seja, alinhado aos interesses geopolíticos dos EUA em interceder na integração Euroasiática. O Brexit foi um primeiro golpe à União Europeia que seria seguido de outro ainda maior em pouco tempo, e de quebra protegeu um importante parceiro histórico do hegemon.


Finalmente, a Ucrânia foi escolhida a dedo pelos EUA, que tiveram participação direta na construção do conflito, conforme demonstrado na seção precedente. A Ucrânia não apenas se constituía o principal parceiro comercial da Rússia, como está próxima o suficiente de Moscou para representar uma ameaça evidente à segurança daquele país em caso de guerra. Além de tudo, a Ucrânia servia já há décadas como uma via de transporte de energia russa para Europa Ocidental.


Retórica e simbolismo para a cisão


A estratégia simbólica e ideológica para controlar a comunicação no conflito é notável por parte dos Estados Unidos. Ao colocar Petro Poroshenko no poder e munir os grupos russofóbicos e neonazistas ao mesmo tempo, o imperialismo logrou fortalecer (com armas, dinheiro e mídia) a extrema direita ucraniana. Não é surpresa que tenham sido escolhidos os setores mais reacionários da política ucraniana para defender os interesses estadunidenses, sendo esta a prática em todos os golpes de estado orquestrados por Washington em sua práxis de suporte a ditadores mundo afora.


No entanto, no caso da Ucrânia o efeito foi ainda mais expressivo, pois, ao passo que fortaleceu o discurso conservador e, até mesmo, racial, no leste europeu, aumentou concomitantemente a pressão migratória em direção ao Ocidente. E mais, agora se tratavam de migrantes brancos, de cabelo loiro e olhos azuis.


O cenário político na Polônia e Hungria já estava absolutamente tensionado para extrema direita, e a tomada da Ucrânia contribuiu para reforçar o discurso conservador no lado ocidental, isto é, o golpe na Ucrânia teve efeitos imediatos na política interna alemã e francesa. A retórica racial da superioridade europeia é uma chave simbólica de fácil penetração naquelas sociedades, em contraposição à noção internacionalista de uma sociedade global, além de mostrar resultados rapidamente, contribui sobremaneira para afastar a possível aproximação entre as culturas europeias e asiáticas. Discurso especialmente permeável no caso da crise econômica que se alastra desde 2008.


O sentimento russofóbico, encarnado em sangue pela guerra civil ucraniana desencadeada pelo apoio dos EUA e pelo governo Poroshenko, é uma forma antiga de orientalismo, ostensivamente trabalhada durante a guerra fria, portanto, facilmente resgatável. Trata-se de uma chave simbólica representada em inúmeros filmes, comics, séries de tv norte-americanos. No caso da guerra, deu-se ademais um rosto a este sentimento, o de Vladimir Putin, que, apesar de não ser flor que se cheire, obviamente não se encaixa na visão maniqueísta que o Ocidente agora apregoa.


O fortalecimento do sentimento neonazista no leste europeu, aliado à russofobia crescente, em combinação com a pressão migratória vinda do oriente e da África, e, em face de uma “ameaça” a segurança nacional de cada nação europeia, criam o ambiente perfeito para retórica racial e xenofóbica se fortalecer. Ademais, a crise econômica europeia, juntamente ao Brexit e, agora, com a guerra adicionando uma crise energética, relegam a Europa a uma situação dramática tanto social, como econômica e militarmente.


Por essas razões as nações mais influentes da União Europeia, apesar de não se beneficiarem em nada estrategicamente com a guerra na Ucrânia, restaram sem escolha, reféns da sanha sanguinária de Washington e do militarismo da Rússia. Internamente nenhum político francês ou alemão poderá assumir uma postura ambígua, sob pena de suicídio eleitoral. Militarmente há uma enorme pressão para acatar as decisões da OTAN.


Ao fim e ao cabo, resta à Europa retornar à triste memória dos tanques Leopard alemães em combate com forças russas, em ambiente de disputa ideológica entre neonazismo e multiculturalismo. É um imenso retrocesso geopolítico que reaviva um flanco aberto entre Europa e Ásia, essa fossa que quase havia sido transpassada por inúmeras pontes de integração econômica e cultural intercontinentais.


Efeitos do conflito


Segundo o Estado da Noruega, contabiliza-se em princípio de 2023 ao menos 300.000 mortes em decorrência da Guerra Civil na Ucrânia, com cerca de 10% deste número composto por baixas de civis. Milhares de infraestruturas civis como aeroportos, portos, rodovias, gasodutos, estações de rádios, hospitais e edifícios foram destruídos ou danificados. Mais de 13 milhões de ucranianos são refugiados de guerra e encontram-se sem acesso às suas moradias. O prejuízo econômico e social na Ucrânia é profundo e demandará décadas de reconstrução, produzindo efeitos perenes no imaginário social pelo trauma coletivo.


A Rússia, por sua vez, além de perder um imenso contingente militar em um país com baixa densidade demográfica, sofrer centenas de sanções econômicas do Ocidente, prejudicar em longo prazo o relacionamento com Kiev (há pouco tempo, o principal parceiro comercial) e investir grandes volumes de capital na Guerra, absorve grande pressão migratória do Donbass e sofre danos reputacionais enormes no cenário internacional.


Em que pese a aproximação com a China, a Rússia é, após a Ucrânia, a maior perdedora neste conflito, contraindo mortes, dívidas e um enorme problema diplomático, além de um cerco econômico. Por outro lado, a Rússia vê-se obrigada a direcionar a sua política econômica ao Oriente, onde encontra mercado e suporte para seguir seu desenvolvimento de maneira soberana, em contraposição ao mercado ocidental que a sabota historicamente.


Em primeira análise, os efeitos do conflito produziram alguns danos colaterais ao Ocidente. As sanções à Rússia impulsionaram as discussões e resoluções sobre a desdolarização das trocas internacionais, tendo Rússia e China estabelecido um novo sistema de pagamentos com lastro em suas moedas nacionais e sem controle do SWIFT.


O Ocidente perdeu acesso, por decisão própria, às gigantescas reservas russas de energia, aumentando a importância geopolítica dos fornecedores no Oriente Médio e América do Sul (que os EUA controlam a base da bala), e de quebra deixaram tudo para a China que receberá com prazer a preferência para as exportações russas.


Nesse caso, porém, é fundamental dividir o Ocidente entre EUA e UE. Além da própria Ucrânia, que está sangrando por interesses alheios, quem mais perde com o conflito é a UE. Alemanha e França saem da crise de 2008, passam pelo Brexit e aterrissam na guerra da Ucrânia. A brusca interrupção dos planos de integração Euroasiática suprimem o horizonte próspero que ventila do Oriente em expansão. Perdem acesso a um mercado gigante de energia barata e de fácil acesso, e agora terão que buscar no mercado internacional controlado pelos EUA.


A Europa também enfrenta um acirramento da pressão migratória, o crescimento da retórica da extrema direita, e o que é pior, o exemplo da Ucrânia, de que uma milícia armada neonazista pode ter o apoio militar, logístico e financeiro das maiores potências do mundo. Essa instabilidade política e econômica produzirá imensos prejuízos em longo prazo para a Europa continental, reduz sua esfera de influência, e conduz a uma dependência decepcionante em relação aos EUA em matéria militar e energética.


Já para os americanos, tudo corre segundo o plano. A guerra logrou impedir a temida integração Euroasiática, processo do qual jamais faria parte e que deslocaria o centro de poder mundial longe dos oceanos onde há tanto tempo investe em bases militares, marinhas e invasões. As sanções declaradas à Rússia podem criar mais problemas para manter o controle do mercado financeiro internacional, porém o enfraquecimento súbito do euro produziu lucros imensos somados ao confisco das reservas russas.


O enfraquecimento da Europa continental fortalece o papel militar e econômico dos EUA e permite que este defina as linhas da política internacional do Ocidente sem grande oposição. De quebra, uma guerra sempre beneficia a política interna dos EUA e dá fôlego ao complexo-industrial-militar que estava órfão com a resolução do conflito no Afeganistão.


Ademais, o acirramento da divisão com o Oriente é uma grande vitória ideológica para o neoimperialismo, define bem a nova e velha inimiga Rússia e reforça a preparação para o grande embate do século 21 que os EUA travarão com a China. Com o leste europeu “sob controle”, todas as atenções e as armas se voltam ao Sudeste Asiático, e, correndo contra o tempo, os EUA logo terão que dar mais uma cartada no cenário internacional. Espero que desta vez o plano não corra tão bem para o imperialismo.


Fernando Quintanilha Namur é formado em Direito pela FDUSP, dirige a Cooperativa COOPERIG, atuante na Ilha Grande (RJ), é fundador da ONG Somos Ilha Grande, atuou no Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da FDUSP e é fundador do Núcleo de Direito Cidade e Cultura (NDCult) da mesma Faculdade.


Crédito da foto da página inicial (o Pentágono, EUA): Wikimedia Commons 

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