top of page
fundo.png
  • Foto do escritorBrasil Debate

Uma lei mais justa para a cultura

Tramita há alguns anos no Congresso Nacional um projeto de lei que altera substancialmente a Lei de Incentivo à Cultura, nº 8313/91, mais conhecida como Lei Rouanet, em alusão ao então Ministro da Cultura. Entre outros mecanismos de fomento, como o Fundo Nacional de Cultura, cuja fonte de recursos é composta quase que exclusivamente de repasses orçamentários, é previsto o incentivo a projetos culturais por pessoas físicas e jurídicas de até 4% do imposto de renda devido. Em vigor há 22 anos, a lei representou e representa um grande reforço ao orçamento do Ministério da Cultura. Para se ter uma ideia de sua importância, no ano de 2013, foram captados via Lei de Incentivo R$1,26 bilhão, enquanto a execução orçamentária do Ministério foi de R$838 milhões, valor 33% inferior. Desde sua entrada em vigor em 1992, foram captados via renúncia fiscal R$12,26 bilhões em valores atualizados.

À primeira vista, como querer alterar uma lei que irriga a produção cultural do País com valores 33% superiores ao orçamento executado do Ministério responsável por sua gestão? Seus benefícios são, claro, inegáveis. Só a área da preservação do patrimônio cultural, ao longo de sua vigência, recebeu recursos da ordem de R$1,88 bilhão. Um segmento em que, historicamente, a quase totalidade dos recursos é oriunda do orçamento federal.

Sua aplicação por mais de duas décadas e a ampliação do conceito de patrimônio cultural, chancelado pela Constituição de 1988, explicitam essa necessidade. A lei abrange vários segmentos, como a produção editorial, artes cênicas, música erudita e instrumental, artes visuais, cinema de curta e média metragem, preservação do patrimônio cultural material e imaterial, museus, aquisição de acervos bibliográficos, fonográficos e artísticos. Alguns desses segmentos apresentam maior viabilidade comercial e apelo de público e naturalmente são mais atraentes para receber os incentivos, especialmente das empresas privadas, que os utilizam em suas estratégias de marketing. A consequência é que acabam por drenar os recursos dos segmentos menos atrativos, mas igualmente importantes para o desenvolvimento cultural do País.

Esta situação gera um descompasso com a política nacional de cultura, concentrando os recursos na região Sudeste, especialmente no eixo Rio/São Paulo, polo da produção cultural do País. Seu efeito mais perverso é apoiar precariamente as manifestações e referências culturais de grupos sociais expostos a situação de fragilidade e marginalidade social e econômica, como os detentores de saberes e fazeres tradicionais, indígenas e quilombolas que produzem música, dança, folguedos, artesanato, ofícios e modos de produção de profundas raízes no imaginário da sociedade brasileira.

Nas palavras de Milton Santos, geógrafo e pensador da geografia humana, são os “homens lentos” capazes de resistir ao rolo compressor da globalização, por sua não inserção nos circuitos do consumo massificante que pasteuriza as identidades e lhes retira sua alteridade. Em um país em que o passado convive em larga medida com o presente, é o paradoxo da pobreza e do isolamento que preservam a autêntica cultura nacional. Samba de roda, maracatu, frevo, reisado, jongo, congada, línguas em extinção (só no Brasil se falam cerca de 200), teatro de bonecos, culinária, além de dezenas de outras manifestações que, por falta de apelo comercial e por localizarem-se especialmente nas regiões Norte Nordeste e Centro-Oeste, ficam ao largo dos benefícios gerados pela lei.

A solução aparentemente simples, de estabelecer critérios que estimulem a descentralização dos recursos, em condições mais favoráveis às regiões menos aquinhoadas atualmente, enfrenta resistências daqueles segmentos que são ligados às atividades que hoje hegemonizam a captação dos incentivos e adiam as mudanças necessárias. Não se trata de estabelecer uma situação de conflito e disputa de setores da produção cultural que têm singularidades bem distintas. Trata-se de impedir que muitas manifestações essencialmente ligadas à alma brasileira caminhem celeremente para a extinção.

O economista Celso Furtado dedicou parte de sua vasta obra a estudar as relações entre cultura e desenvolvimento. Vale a pena concluir com uma afirmativa sua, de um de seus últimos livros, “O Capitalismo Global”: “Se a política de desenvolvimento objetiva enriquecer a vida dos homens, seu ponto de partida terá que ser a percepção dos fins, dos objetivos que se propõem a alcançar os indivíduos e a comunidade. Portanto, a dimensão cultural dessa política deverá prevalecer sobre todas as demais”.

Comments


bottom of page