Publicado no blog Paulo Moreira Leite em 22-5-2015
A principal dificuldade para se compreender o alcance real do conjunto de acordos de US$ 53 bilhões para investimentos da China no Brasil reside em sua dimensão. Embora possam ser encarados, hoje, como um simples calhamaço com algumas centenas de folhas de papel, autografadas pelas autoridades dos dois países, os 35 acordos bilaterais entre os dois governos envolvem um conjunto gigantesco de decisões, possibilidades e perspectivas, formando um bloco de medidas capaz de produzir um impacto tão grande em nosso futuro que é difícil encontrar um parâmetro de comparação.
Não há, na história diplomática brasileira, o registro de qualquer evento desta envergadura, envolvendo um espectro tão amplo e variado de atividades estratégicas como mineração, petróleo, defesa, aeronáutica, ferrovias, exportação de carne — e ainda um curioso programa de cooperação esportiva para aperfeiçoamento de atletas de ping-pong e ainda de badminton, aquele esporte que é uma mistura de volei de praia e jogo de peteca, muito popular na China e quase desconhecido no Brasil.
Anunciado numa conjuntura em que a oposição faz o possível para criar um grande pessimismo em torno do futuro do país, o acordo levou o diplomata Samuel Pinheiro Guimarães — secretário-geral do Itamaraty na gestão de Celso Amorim, ministro nos dois mandatos de Lula — a fazer uma ironia em entrevista ao 247: “ou os chineses são desinformados e totalmente equivocados, ou quem imagina que o Brasil enfrenta uma situação catastrófica precisa aprender prestar atenção à realidade.” Crítico do programa de ajuste econômico que marca o segundo mandato de Dilma, Samuel também afirma: “ninguém investe 50 bilhões de dólares num país à beira do abismo. Muito menos quem tem as maiores reservas do mundo e pode escolher aonde coloca cada centavo.”
Em busca de uma referência histórica para o acordo com a China, diplomatas ouvidos pelo 247 admitem alguma semelhança entre os acordos assinados no início da semana e o Plano Marshall, programa de investimentos criado pelo governo dos Estados Unidos logo depois da Segunda Guerra Mundial, que permitiu a reconstrução da economia européia nas décadas seguintes.
“Mas é um Plano Marshall sem contrapartidas políticas nem ideológicas,” adverte o embaixador José Alfredo Graça Lima, que coordenou as negociações pelo lado brasileiro. Assim batizado em homenagem ao então secretário de Estado George Marshall, a partir de 1947 o plano que leva seu nome mobilizou US$13 bilhões na época — cerca de US$ 130 bilhões em dinheiro de hoje — para produzir uma dupla mudança no Velho Mundo, que teve impacto em todo planeta. Se, de um lado, contribuiu para modernizar uma economia destruída pelos bombardeios dos próprios aliados, que carregava marcas duradouras da sociedade aristocrática do século XIX, também jogou um papel decisivo para atrair os países da chamada Europa Ocidental para a áerea de influência política dos Estados Unidos. Foi assim que França, Italia, Inglaterra e outros países se consolidaram como aliados incondicionais de Washington durante a Guerra Fria, condição assegurada por laços econômicos, diplomáticos — e também militares, através da Organização do Tratado do Atlântico Norte. Os acordos Brasil-China não são nada disso.
Com uma postura que a maioria dos observadores concorda em definir como 100% pragmática, a diplomacia chinesa convive com indiferença absoluta pelo mais diversos regimes políticos. Não debate assuntos internos dos países-anfitriões e não gosta de ser forçada a tratar de seus próprios tabus, onde a área de direitos humanos é sempre uma questão delicada. Suas reais finalidades externas começam e terminam na economia. Até pelo tamanho de seu país e a dimensão de sua população de 1,3 bilhão de almas, os chineses são caçadores de fontes de matérias primas de todo tipo e tem uma preocupação permanente em encontrar mercado para suas manufaturas — o país, hoje, tem a maior produção industrial do planeta.
Como ocorre com boa parte dos episódios relevantes da evolução humana, a aproximação entre brasileiros e chineses não foi feita por uma sucessão de atos de pura vontade política, mas pela capacidade das partes em dar respostas racionais diante de circunstâncias definidas.
Os dois países começaram a aproximar de verdade quando o Brasil consumava a transição da ditadura militar para a democracia, num processo simultâneo à consolidação do programa de reformas — na época chamado de “economia socialista de mercado ” — realizado por Deng Xiao Ping. Foi naquele período que José Sarney fez uma viagem a Pequim, foi recebido pelo próprio Deng e debateu tratados de natureza diversa, inclusive espacial.
No governo Luiz Inácio Lula da Silva, onde a diplomacia brasileira consumou uma guinada definitiva em direção aos países que começavam a ser chamados de emergentes, o Itamaraty deu um voto de imenso valor diplomático quando, nos debates da Organização Mundial de Comércio, aceitou incluir a China na categoria dos países que possuem uma “economia de mercado”. O nascimento dos BRICS ajudou a pavimentar o processo construção de um pólo diplomático alternativo ao lado de Índia e África do Sul, também, mas os 35 acordos da semana passada têm natureza bilateral.
Reunem interesses complementares de brasileiros — cuja economia pede novos investimentos — e de chineses, que não podem cumprir um planejamento econômico destinado a modernizar o país e oferecer novas oportunidades a sua população sem abrir mercados externos para investimentos produtivos, que lhe permitam empregar centenas de milhões de pessoas.
Num mundo em prolongada crise econômica desde o colapso dos derivativos, em 2008, Pequim movimenta uma máquina em outro percurso, que não enfrenta concorrentes nem mesmo rivais.
Afundada em seus programas de austeridade, a Europa não consegue sair do próprio atoleiro e tem sido incapaz de responder ao drama — modesto sob todos os pontos de vista — até de uma economia como a da Grécia, que pede um pouco, só um pouco, de oxigênio para respirar. O desempenho dos Estados Unidos tem sido um pouco melhor. Nem de longe, contudo, os bancos que governam a economia norte-americana têm demonstrado apetite para levantar o mercado interno de forma regular, e muito menos para estimular o crescimento fora dos EUA. Preferem alimentar-se no tradicional cassino e acumular ganhos especulativos. O resultado é que a esperada recuperação mundial se mostra lenta, sem um sinal visível nem convincente.
Neste ambiente em geral pouco promissor, a China, com o segundo PIB do planeta, é a economia que faz o contra-ciclo. Crescendo 7,5% ao ano — já cresceu 10% por um longo período — atua como uma locomotiva na contra-corrente de uma tendência mundial ao crescimento baixo e mesmo a recessão.
Vem daí o papel crescente que a China passa a desempenhar fora de suas fronteiras, ocupando espaço — sempre pacificamente, sem estimular atritos políticos — que até há pouco pareciam reservados aos Estados Unidos. O desembarque no Brasil, na semana passada, consumou uma vitória indiscutível do Dilma Rousseff, também. “Demonstra a credibilidade do país, ” afirma Graça Lima.
Experimentado arquiteto da diplomacia comercial brasileira, a estrela de Graça Lima iluminou-se no governo Fernando Henrique Cardoso, perdeu força durante os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e, de uns tempos para cá, recuperou o brilho durante o governo Dilma Rousseff. Na condição de Subsecretário de Assuntos Políticos 2, área responsável pelas relações com os países da Ásia e com os BRICS, Graça Lima conduziu negociações acompanhadas, de perto, pela própria presidenta da República — que sempre devotou gosto e atenção especial às negociações com a potência asiática. Semana sim, semana não, nos últimos meses Graça Lima recebia missões diplomáticas de Pequim no gabinete no Itamaraty, em conversas destinadas a acertar detalhes dos acordos. Os pontos mais complicados, como se pode imaginar, eram os urgentes e importantes, envolvendo a venda de aviões e as ultimas barreiras para a exportação da carne brasileira — e só foram resolvidos poucos dias antes da chegada da comitiva chinesa ao país.
Como se sabe, tão importante quanto a assinatura dos 35 acordos bilaterais, será o esforço para garantir sua execução em prazos compatíveis. A convivência econômica entre povos e países está recheada de iniciativas bem sucedidas e também de idéias que deram errado. Os anos iniciais do Plano Marshall foram muito menos animadores do que se podia imaginar no futuro. A Aliança para o Progresso, de 1960, que seria um esforço de John Kennedy para estimular o crescimento da América Latina em bases democráticas para fazer frente ao apelo da revolução cubana encerrou-se sem progressos visíveis e o apoio a golpes militares contra governos progressistas. O futuro dos países não se encontra numa bola de cristal e sempre será um horizonte formado por surpresas e movimentos inesperado. Mas é difícil negar que, por sua história recente, Brasil e China, tão diferentes, tão distantes, têm um conjunto de interesses diferentes mas complementares que podem ser atendidos de forma proveitosa pelas partes. Esta é a racionalidade do acordo.
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