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Um apelo à lucidez

As finanças públicas estão em pandarecos. O Brasil precisa de fôlego para se recuperar de um histórico galopante de dívida pública, somada por anos de juros altos como mecanismo de controle inflacionário, pela emissão de títulos do Tesouro (rolagem) e dificuldades visíveis no saneamento do déficit primário das contas. Essa fatia necessária (o Governo deve honrar o compromisso com os investidores que compraram os títulos de sua dívida) abocanha uma relevante parte do orçamento da União. Hoje, somos incapazes de qualquer mudança significativa de ampliar investimentos em políticas públicas, sobretudo, em razão desse estrangulamento da possibilidade de gastos, oportunizado pela PEC do teto. Uma dívida galopante e uma arrecadação decrescente acabam resultando em diminuição da saúde fiscal, um aumento da desconfiança dos credores e a diminuição de investimentos. Esse é nosso cenário trágico.

Voltamos ao debate da eficiência: como fazer mais com menos. Um aperto fiscal já é parte de nossa realidade. E, nisso, o Estado brasileiro precisa de reformas urgentes, pela via da desburocratização e do acesso do cidadão a serviços essenciais de forma rápida, integrada, eficiente.

Seja Haddad ou Bolsonaro quem suba a rampa do Planalto em 2019, estará diante do primeiro e mais emergente desafio do país: recuperar a saúde de nossa economia. Isso significa, em primeiro lugar, criar condições favoráveis para o investimento produtivo, que de fato gere empregos. Isso somente pode ser feito mediante uma reforma tributária ampla, que desonere pequenos e médios produtores, comerciantes e prestadores de serviços, que se incentive a economia digital e criativa, que o trabalho autônomo e o assalariado possam ser exercidos de forma organizada e juridicamente segura, tanto a empresários quanto aos trabalhadores. A arrecadação assim passa gradativamente a crescer, se a economia cresce, e permite a aplicação de recursos em áreas essenciais à vida de milhões de brasileiros: saúde, segurança e educação públicas.

A esquerda petista precisa de autocrítica. Meu apelo à lucidez é também nesse sentido. Não basta a argumentação de que Dilma sofreu um impeachment em razão de pressões cambiais, “pautas-bomba” no Congresso e a eleição de Cunha ou o ardil de Temer, seus malvados favoritos. Por mais que as tais pautas tenham contribuído para piorar a situação das finanças, essa não é nem de longe sua principal razão. O impeachment foi muito além disso. Passou pela enorme dificuldade de trânsito e diálogo do Planalto com os diferentes partidos do Legislativo e setores do empresariado. Sobretudo, encontrou no fracasso da economia seu principal motivo.

O sistema presidencialista de coalizão brasileiro contorceu leis, e a própria Constituição, para proceder ao impedimento de uma presidente que, de fato, nenhum crime cometeu. Mas que também agiu de forma irresponsável com as finanças do país, apostando em desonerações fiscais, incentivos públicos via BNDES a conglomerados empresariais, e a um igualmente atrapalhado ajuste fiscal em seus últimos suspiros, a esperança de segurar a catástrofe e aumento de investimentos, e consequentemente mais empregos. Fracassou.

Resolver os desafios que se colocam emergenciais para a economia brasileira dependerá de uma enorme habilidade de negociação. E por isso também meu apelo à lucidez.

Jair Bolsonaro é um parlamentar medíocre. Em 27 anos de mandato, conseguiu aprovar apenas 2 projetos. Apresentou projetos de lei com muito menos expressividade. Já balançou entre elogios o intervencionismo militar da ditadura e elogios ao extremo liberalismo a la Pinochet. E, sobretudo, hoje patina entre declarações de seu vice e de seu guru econômico, incapazes de articularem um mesmo discurso. A duvidosa relação entre uma equipe de campanha, ainda em fase propositiva (e não na selva real da política pós-eleitoral) solapa as esperanças dos investidores: relativiza privatizações, relativiza a reforma da previdência (assegurando privilégios a militares), relativiza o 13º salário, titubeia quanto às faixas de tributação do imposto de renda.

Sua capacidade de comunicação não vai muito além de tuítes. Após uma inesperada ida ao segundo turno, Jair, mesmo tendo reservado uma coletiva de imprensa, desistiu. Transmitiu, de casa, ao lado de Paulo Guedes, um vídeo-recado que duvidava da lisura e confiabilidade do processo eleitoral, da transparência do TSE, da institucionalidade democrática. E que, ao mesmo tempo, prometia “acabar com o ativismo no Brasil”. Desprezando a existência de um sem número de movimentos, organizações, associações, sindicatos, Jair se contenta em embalar toda a sociedade em movimento como “ativista”.

Em um efeito conhecido da Ciência Política de “coattail” (rabo de casaca), em que os candidatos ao Legislativo pegam carona na votação expressiva do chefe do Executivo, o Congresso passou por um expressivo aumento de legisladores do partido de Bolsonaro, o PSL. Contudo, insuficientes para formarem maioria. O Congresso, fragmentado entre diversas legendas, será um campo de batalha difícil para aprovar qualquer reforma indispensável para o país retomar investimentos, gerar emprego e produzir o crescimento necessário à distribuição de renda. E um trânsito dialogado e consensual entre os partidos é requisito central para tanto.

A combinação entre temperamento histriônico, dificuldade de diálogo, bloqueio comunicativo, interferências e incoerências de discurso entre os membros de sua própria equipe, descrédito às instituições democráticas, somadas a promessas de reduzir ministérios ao número de 15 e indicar apenas técnicos para seu comando (o sistema presidencialista de coalizão depende, invariavelmente, de incentivos entre bancadas e o Executivo) podem colocar, e, na verdade, o mais provável é que colocarão em xeque a governabilidade de um eventual governo de Jair Bolsonaro. E a promessa do “messianismo milagroso”, essa, tenderá a naufragar precocemente.

Some-se a isso uma insatisfação combustiva que já dá sinais perigosos de existência. Insatisfação legítima com o fracasso do Partido dos Trabalhadores em seus últimos seis anos no poder, em seguir distribuindo renda, por meio de aumentos reais em ganhos e em produtividade no país, por meio de programas sociais, por meio de acessos fundamentais a direitos, por meio de políticas públicas. Insatisfação mais que legítima com a corrupção generalizada, escancarada à exaustão pelos meios de comunicação, em denúncias e condenações que atingiram lideranças tradicionais do PT, como o próprio ex-presidente Lula, e que seguem sendo reveladas.

No entanto, tal insatisfação tem sido expressa por uma negação odienta, violenta, a espécies de “bodes expiatórios”, eleitos como responsáveis pelos problemas do país: petistas, simpatizantes e militantes de partidos de esquerda, pessoas LGBT, ambientalistas, movimentos sociais, defensores de direitos humanos, entre outros. O recurso da violência solapa a existência minimamente civilizada da democracia. E, ao ocorrerem, devem ser imediatamente rechaçadas, sob pena de tornar legítima a violência privada, legitimada pela representação do imaginário na figura de um candidato à Presidência. Candidato que passa a ser responsável, em grande medida, por cada palavra, ação e omissão sua que produzam efeitos generalizados na população.

Há uma semelhança histórica sobre as vias pelas quais percorremos. Em um forte discurso moralizante, legalista e anticorrupção, surgiu no país a União Democrática Nacional – UDN, que apelava pela moralização institucional. Setores liberais que se organizaram após o fim do Estado novo varguista (e que inicialmente incluíam também representantes da esquerda democrática) tentaram impugnar as eleições de 1950 e 1955, após seus candidatos serem derrotados nas urnas; posicionaram-se contrariamente à posse constitucional do vice-presidente eleito João Goulart quando da renúncia de Jânio Quadros e, ainda, foram um dos principais articuladores do golpe de estado de 1964.

Em igual medida, o discurso anticorrupção que tem movido ódios e paixões arrasta uma descredibilidade institucional com enormes riscos à própria sobrevivência da democracia: desprezam-se instituições, manipulam-se leis e interpretações, relativiza-se o texto constitucional, abraçam-se heróis e salvadores. Ressentidos partidários dos denunciados e culpados tornam-se também revanchistas. Não se trata aqui de deixar de investigar, processar, punir quem de fato corrompe. Longe disso. Mas de compreender que descredibilizar urnas, achincalhar o texto constitucional ou abraçar a violência como recurso àquele que opõe ao que se reputa melhor ao país não nos tirará de nenhuma crise. Pelo contrário, tenderá a agravá-la.

Tenho certeza que não seria bom termos novamente um governo sob o comando de um representante do PT, nem para o país, e nem mesmo para a imagem do próprio partido. Mas isso não é suficiente para decidirmos pelo agravamento da crise e o risco real de ameaças a ela mesma. E governar não será tarefa fácil nem para Jair Bolsonaro, nem para Fernando Haddad.

Mas, ao mesmo tempo, acredito que Haddad tem condições muito maiores de formar uma aliança partidária pela democracia. De seguir garantindo força e condições para o Ministério Público, os órgãos da Justiça, a Polícia Federal agirem com absoluta autonomia, investigando casos de corrupção, punindo desvios, corrigindo rumos. Essa foi a tônica desses órgãos até hoje. E não, a democracia nem suas instituições foram sequer de longe amordaçadas pelos governos petistas. O PT, parafraseando Miriam Leitão, seguiu, desde que assumiu a Presidência, fielmente as regras do jogo democrático. E não, o Brasil nem de longe se tornou, ao longo desses anos, algo parecido com a Venezuela.

Bolsonaro, destemperado, parece ter enormes dificuldades de negociar, atrapalha-se no que diz e terá dificuldades de governar com um Congresso tão fragmentado. A sandice de sua proposta, de nomear apenas pessoas do setor privado às posições-chave da administração pública, pode solapar uma malha de serviços e estruturas públicas de que muita gente pobre necessita para sobreviver: quer pela inexperiência de gerir um serviço público, quer pela possibilidade de privatizá-lo, desmontando-o de forma abrupta e sem garantias a quem dele mais precisa.

Não se governa com frase de efeito. E a julgar pela fraca ação do ex-parlamentar Jair, seria melhor “jair” se acostumando com um dirigente que precisaria criar ainda maiores incentivos às bancadas para conseguir governar. Se não são cargos na administração, o que seriam? Vantagens de que natureza? Lícitas ou ilícitas? Talvez seja melhor “jair” se acostumando com um governo ainda mais inepto que o de Dilma. Ou ainda mais corrupto, que descredibiliza instituições.

Registre-se hoje uma proposta mirabolante da equipe de Bolsonaro, um “super bolsa-família”, verdadeiro populismo eleitoreiro, que pretende inclusive garantir o pagamento de bolsa-família a famílias que já tenham conquistado emprego com carteira assinada, mirando votos dos eleitores nas regiões mais empobrecidas do país.

Mesmo num cenário semelhante, me parece que Fernando Haddad terá muito maiores condições de recompor as bases da política. E, quem sabe, de renovar os pressupostos, o funcionamento e a lógica interna do Partido dos Trabalhadores, com Lula preso e fora do jogo. Terá de resistir fortemente aos dirigentes partidários, e chamar para si a responsabilidade de escrever um novo capítulo da história democrática do país.

Um apelo à lucidez: dia 28 de outubro não se trata de uma disputa entre PT e PSL, entre o “novo” e o “velho”, entre a necessária alternância partidária (sim, meus amigos, ela é necessária à saúde de uma democracia) no poder e a “mesmice” do ritmo de funcionamento do país. Mudar por mudar é algo absolutamente temerário. Há riscos enormes em afirmar que basta a mudança que os ganhos serão imediatos. A democracia evidentemente depende da mudança, na transitoriedade de partidos e representações no exercício do poder. Mas há pressupostos fundamentais da democracia que são inegociáveis. E não podem ser ameaçados. A convivência democrática é, talvez, a mais importante delas.

Essas eleições já se marcam como povoadas de medos, em todo o imaginário. A dose de realidade que falta a cada um de nós alimenta salvacionismos, idealismos. Bolsonaro é, em alguma medida, um subproduto da fantasia que se instalou no poder: um país que viu renascer a esperança, mas foi confrontado anos depois com a realidade, dura, da vida material. Que negou a dimensão pragmática de quem ocupa o poder, a necessidade de dividir, de transigir, de negociar, de delegar. Que se contaminou de transações e negócios espúrios para fazer a difícil obra do governar. E que pintou para o povo um quadro bastante distante daquele que milhões e milhões de pessoas passaram a viver: viram seus negócios fecharem, a recessão bater forte, e também perderem o emprego e o alento. Pintou-se nova fantasia, carregada nas tintas do antagonismo a essa primeira fantasia. Um anti-herói, um capiroto, um antagonista, verborrágico, intolerante, ressentido, irado, armado.

Respiremos. O que se coloca à nossa frente é de uma disputa entre quem tem capacidade de diálogo, trânsito e condições de promover as reformas necessárias e quem não tem. E, sobretudo, entre quem tem seguidores que colocam em risco a credibilidade das instituições, e promovem a violência, e quem tem seguidores que não estão nesse campo, e reputam necessário o diálogo para os ganhos inerentes ao regime democrático.

É essencial que tenhamos, em todos os lados deste segundo turno, lucidez.

Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil e AFP

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