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Um ano de Temer: governabilidade sem legitimidade

É possível avaliar o primeiro ano de governo de Michel Temer a partir de uma característica bastante curiosa: o aprofundamento da separação entre governabilidade e legitimidade. Há um divórcio entre o programa econômico do governo, em implementação acelerada, e a nação. O governo tem ampla maioria no Congresso, mas é rejeitado pela população, pois suas políticas não produzem crescimento e redução do desemprego.

Por um lado, desde seu início, ele vem sendo rejeitado pela esmagadora maioria da população, ostentando um índice de aprovação menor que o de Dilma. Afinal, além de ter vindo ao mundo por meio de um impeachment casuístico, o governo do golpe está implementando reformas amplamente impopulares, principalmente nas áreas fiscal (emenda do teto de gastos e nas regras da Previdência) e trabalhista, mas também antinacionais (como o fim do modelo de partilha na exploração do pré-sal, que interessa a grupos empresariais estrangeiros e projeto de venda de terras ao capital forâneo) e anti-industrializantes (desmonte das políticas de modernização produtiva aplicadas aos investimentos sob controle do capital local).

Por outro lado, é bastante forte a sua capacidade de conseguir apoio no Congresso, ou seja, a sua governabilidade. A alta fragmentação partidária do Congresso não se mostra obstáculo à aprovação da agenda do Executivo no Legislativo, uma vez que grande parte das lideranças partidárias consegue disciplinar suas bancadas para votar a favor das medidas de interesse do governo. Fala-se até na vigência informal de um semiparlamentarismo no atual padrão de relação entre Executivo e Legislativo.

A aprovação em ritmo acelerado das reformas orientadas para o mercado, com a possível exceção da Previdência, contrasta com a sua forte rejeição na sociedade, com a impopularidade presidencial e com a crise de legitimidade dos representantes políticos e dos partidos.

Michel Temer não foi eleito pela população. Sua agenda é claramente a do candidato derrotado no segundo turno em 2014. Seu programa de governo dificilmente estaria sendo executado se tivesse dependido do processo eleitoral, pois não venceria o pleito. Sua desvinculação do voto popular e dos interesses subjacentes propicia um grau elevado de autonomia em relação aos requisitos da democracia representativa.

Tal desencontro entre governo democrático e mercado vem sendo uma das características das políticas de austeridade preconizadas pelo neoliberalismo em vários países do mundo, o que ajuda a entender a emergência de novas alternativas, principalmente à direita, mas também à esquerda, como se deu nas últimas eleições nos EUA (Trump e Sanders), Reino Unido (Brexit e Corbyn), Holanda (Partido da Liberdade), França (Macron, Le Pen, Mélenchon) etc.

Entretanto, como é possível que um Congresso eleito pelo voto direto mostre-se tão descolado dos interesses da maioria do eleitorado? No atual contexto da crise brasileira, exacerbou-se a crise de representação. Representar consiste em responder por alguém que está ausente. Na impossibilidade do conjunto da população decidir diretamente sobre todos os assuntos legislativos, a representação torna-se fundamental para viabilizar o processo democrático de decisão política nas sociedades nacionais. No Brasil pós-impeachment, ocorre o contrário do que o modelo democrático-representativo se propõe a fazer. Tem havido o aprofundamento da separação entre parlamentares e eleitores. Considerando a maioria numérica de cada um dos lados da relação de representação, os representantes representam a minoria, assumem posição contrária à dos representados.

No entanto, é equivocado incorrer na ingenuidade de uma autonomia completa da classe política em relação à sociedade. Política e sociedade não são absolutamente independentes, pois a organização social, ao definir os interesses e valores hegemônicos em uma coletividade, é, em última instância, um corpo político, ainda que certos atores, inclusive na classe política, insistam em negar a política, devido ao desgaste do sistema representativo perante a opinião pública.

A crise de representação atualmente verificada decorre, em grande medida, da captura dos representantes eleitos em 2014 por uma minoria poderosa, o poder econômico, através do financiamento empresarial de campanha, extinto pelo STF apenas em 2015.

O financiamento pelas corporações eleva a chance de autonomia das decisões dos políticos em relação aos interesses dos eleitores, uma vez que os eleitos tendem a prestar contas mais aos financiadores de suas campanhas que aos cidadãos que os elegeram.

A tabela abaixo contém informações sobre as principais empresas financiadoras dos deputados federais eleitos nas eleições de 2014. Das 513 cadeiras da Câmara, 360 (70% delas) foram ocupadas por políticos financiados pelas 10 principais corporações empresariais que bancaram as candidaturas proporcionais vitoriosas naquele pleito.

Grande parte das denúncias de corrupção amplamente divulgadas pela grande mídia no contexto da Operação Lava Jato diz respeito à utilização de meios lícitos e ilícitos pelas grandes empresas, por meio de caixa 1, caixa 2 e propina, para influenciarem ou capturem as decisões públicas e os recursos orçamentários destinados às obras públicas.


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A facilidade com que as reformas impopulares estão sendo aprovadas no Congresso decorre muito do fato de que os representantes da nação, embora formalmente devessem representar os interesses do conjunto da população, respondem, na prática, principalmente, aos seus financiadores. Ademais, os capitalistas possuem poder público, pois da acumulação de capital provém o lucro, o salário e os tributos governamentais. Se o poder público do capital não encontra freios na esfera política, ele coloniza o Estado e controla ou se livra de vez da democracia, para evitar que a participação da cidadania atrapalhe a voracidade irracional do mercado.

O governo Temer, livre das pressões populares decorrentes do voto, associa-se, com grande intensidade, ao grande capital, que se aproveita de uma situação de ilegitimidade e distanciamento entre o sistema político e a sociedade, mais frequente em contextos autoritários que democráticos, para pressionar pela aprovação de uma série de medidas antipopulares e antinacionais, rejeitadas pela quarta vez consecutiva nas urnas em 2014.

O apoio da grande mídia às reformas funciona como um catalisador ideológico do processo, principalmente quando paira sobre muitos parlamentares a Operação Lava Jato, cujo braço comunicativo é a grande imprensa. Tal aliança liberal de combate politizado à corrupção, vinculando Lava Jato e grande mídia, tem sido uma das locomotivas das políticas de Temer, forçando ainda mais os parlamentares a orientarem seus votos pela lógica da coalizão entre o governo federal e o grande capital. Um braço da coalizão ultraliberal é o combate à corrupção e o outro é a adesão do Congresso ao programa contrarreformista do governo do golpe. A cabeça é a financeirização do sistema econômico, a serviço da dependência nacional.

Assim, a facilidade do governo Temer para aprovar reformas de grande impacto e de baixíssima popularidade prescinde de legitimidade e da capacidade de pactuar consensos amplos no Congresso e na sociedade. Isso não ocorre. A vitória de Pirro de Temer jaz na colonização do Executivo e do Legislativo pelos interesses materiais e ideológicos do grande capital, que lhes financia diretamente ou lhes controla ideologicamente e em termos reputacionais pela ação dos meios de comunicação oligopolizados, em um mecanismo de poder colonizador que tem contado com o precioso auxílio de seus agentes no aparato repressivo do Estado (Judiciário, PGR e PF).

Dessa forma, o caráter de classe do governo Temer em favor exclusivamente dos grandes capitalistas, sobretudo dos grandes rentistas e investidores externos, sobrepõe-se à democracia e à vontade popular manifesta no segundo turno de 2014, com a vitória de Dilma Rousseff.

O golpe até aqui foi uma vitória pírrica. A grande evidência disso é o divórcio entre governabilidade e legitimidade. Esse desequilíbrio, como se sabe, é insustentável. A caça ao presidente Lula e ao PT visa a minimizar o risco das eleições de 2018 para os empreiteiros do golpe. No Brasil da crise, a democracia virou fator de risco. Quem viver verá!

Crédito da foto da página inicial: Antonio Cruz/Agência Brasil

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