O sistema econômico de boa parte da Europa no século XVII era predominantemente de base agrícola. A indústria ainda incipiente, mas já demonstrava sua capacidade de dinamizar as relações sociais e apontava os elementos característicos do capitalismo nascente. A primeira iniciativa racional de compreender o funcionamento desse sistema foi dos chamados fisiocratas, um conjunto de filósofos da economia com base na França.
Como é de conhecimento geral daqueles que estudam economia, história e sociologia, esses filósofos sociais tinham na agricultura o entendimento da origem da riqueza de uma nação. O comércio e a indústria eram considerados segmentos marginais, denominados de estéreis. O produto líquido da agricultura se distribuía pelos demais setores do sistema e os mantinham.
Até os dias atuais, especialmente em um país continental como o Brasil, de forte tradição agrícola, é comum ver ou escutar pessoas e vozes que evocam as ideias de caráter fisiocrata, defendendo o jargão de que a agricultura é o carro-chefe da economia brasileira, mesmo participando bem menos na formação do produto interno e da renda nacional na contemporaneidade.
Um dos mais famosos trechos citados de John Maynard Keynes, quando comenta que “homens práticos, que se julgam imunes a quaisquer influências intelectuais, geralmente são escravos de algum economista já falecido”, é muito apropriado quando testemunhamos, com frequência, discursos veementes de que o Brasil deve se tornar o celeiro agrícola do mundo, nos especializarmos nessa atividade primária, abandonando qualquer perspectiva de um processo de desenvolvimento industrial de base intensiva em tecnologia. É o espírito fisiocrata pairando no ar tropical, olhando para o que resta das florestas úmidas e desejando em seu lugar uma esplêndida plantação de grãos.
Para compreender como a agricultura era central no sistema econômico e os demais segmentos econômicos giravam em sua órbita, aproveitando-se da formação e distribuição da riqueza produzida, a fisiocracia francesa criou o famoso Tableau Économique pelas mãos do médico particular de, nada mais nada menos, Luís XV, o extravagante e grande soberano da França durante 1715 e 1774.
François Quesnay desenvolveu uma espécie de mapa que desenhava a origem da riqueza e sua distribuição e circulação entre os participantes do sistema econômico. O Tableau, portanto, foi uma primeira e importante tentativa de compreender o sistema de produção, suas relações socioeconômicas. Era uma espécie de modelo que retratava a economia política francesa e sua administração política, nos termos de como essa produção de riqueza se organizava. A formação médica de Quesnay influenciou sua ideia de conhecer, de maneira anatômica, o sistema econômico da época.
Além de Quesnay, a fisiocracia contava com Anne Robert Jacques Turgot, um pensador de linha liberal, formado na Universidade de Sorbonne. Poucos especialistas comentam, mas Turgot teve certa influência sobre o pensamento do escocês Adam Smith, fundador da corrente de pensamento que veio a ser denominada de economia clássica.
Em 1774, Turgot foi convidado e aceitou ser Tesoureiro da França por Luis XVI, o último Rei, deposto em 1792, durante a Revolução Francesa, e decapitado no ano seguinte. Não tão diferente como hoje se defende quase de maneira absoluta, Turgot considerava que o Estado tinha que adotar uma postura de parcimônia; rechaçava os gastos públicos porque eles poderiam causar ônus aos empresários através da necessidade de o Soberano aumentar impostos para financiá-los. Portanto, mais impostos para essa finalidade atrapalhariam, para um bom fisiocrata, a atividade agrícola e seu produto líquido, prejudicando todos os demais segmentos econômicos que giravam ao seu redor.
Imagine agora, caro leitor, Turgot tendo a missão de manter sob controle a perdulária corte francesa e seus luxos, tudo em nome de uma racionalidade econômica a favor daquilo que acreditava ser o verdadeiro esteio da formação da riqueza francesa, a agricultura.
A empreitada do respeitável Turgot não foi à frente. Ele não logrou êxito, pois esbarrou na rígida estrutura de privilégios da elite aristocrática francesa no Ancien Régime. Sobre esse aspecto o grande e sarcástico economista John Kenneth Galbraith afirmou em um livro sobre história das ideias econômicas que
“pessoas que gozam de privilégios preferem sempre arriscar-se à total destruição, em vez de submeter-se a qualquer redução de suas vantagens materiais. A miopia intelectual, também conhecida por estupidez, sem dúvida alguma é uma forte razão. Mas acontece que os privilegiados acham que seus privilégios, não importando quão são ostensivos possam parecer aos outros, constituem direitos solenes, fundamentais, que lhe cabem por obra de Deus.”[1]
Turgot fracassou completamente e se foi em companhia com todo um sistema de privilégios que desmoronou por se tornar carcomida e não suportar a revolta daqueles da base da pirâmide social, que sequer aguentariam as reformas propostas por ele e não toleravam mais as injustiças do Ancien Régime francês. A Revolução Francesa cobrou um alto preço ao regime absolutista e as cabeças rolaram sob o movimento gravitacional das guilhotinas.
Quase dois séculos e meio separam esses fatos históricos de um aspecto que muito se assemelha à tentativa de Turgot de implantar um programa de austeridade governamental, visando ao crescimento econômico puxado pela agricultura francesa.
O nosso atual Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, busca, desesperadamente, aprovar e executar medidas draconianas de ajuste fiscal, introduzir reformas estruturais (Previdência e trabalhista) e evitar aumentos de impostos. Cortes orçamentários, contingenciamentos financeiros e desvinculação de receitas tributárias afetam áreas fundamentais, como educação e saúde, e demais consideradas estratégicas, mas desimportantes nesses momentos de austeridade, como ciência, tecnologia e inovação.
Essas estratégias de ajuste, na mesma trilha filosófico-econômica perseguida por Turgot, não têm como princípio atender aos interesses especialmente dos segmentos produtivos tão somente. Elas se direcionam na defesa incontestável da manutenção dos compromissos e respeito aos contratos com os denominados mercados financeiros, que se ancoram na dívida pública como eixo fundamental de acumulação de riqueza, através dos fluxos financeiros assentados na manutenção do binômio juros altos-superávit primário, ao mesmo tempo em que busca praticar um forte controle dos gastos correntes, expansão das receitas e estabilização do nível de endividamento governamental.
Mas, eis que os compromissos do atual governo com alguns privilégios, por outro lado, frustram as estratégias do Ministério da Fazenda. O aumento de salários para servidores públicos, especialmente para categorias do Poder Judiciário e órgãos de controle, com efeito cascata, anula parte das intenções do ajuste fiscal, impondo formas de austeridade ainda mais dolorosas para outras áreas do serviço público, estabelecimento de teto para os gastos públicos, congelamento de salários e projetos reformistas que afetarão direitos sociais fundamentais.
Certamente o que aconteceu com Turgot e o Ancien Régime francês não se compara ao que poderia ocorrer por essas terras, mas se o atual governo seguir nessa linha de governar para os que mais têm e para uns poucos privilegiados, a política econômica de Henrique Meirelles será um retumbante fracasso e a força das ruas poderá acordar mais uma vez, como em junho de 2013.
Nota
[1] GALBRAITH, John Kenneth. A Era da Incerteza: história das ideias econômicas e suas consequências. São Paulo: Pioneira, 1980, pgs. 10-11
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