Publicado no Brasil 247 em 24-6-2016
Numa crise, o principal subproduto não é a queda do PIB. É, por assim dizer, a queda do QI, a derrocada da Razão.
Com efeito, nas crises os ânimos se acirram, as paixões se tornam extremadas e a racionalidade míngua. O aumento do medo e das incertezas leva ao aparecimento de aventureiros políticos, de “heróis” de ocasião, do fascismo e da xenofobia hidrófoba. Logo surgem as “propostas” simples e radicais que vão resolver tudo e as “soluções” moralistas e antipolíticas que prometem tirar os países da crise limpando a corrupção e colocando muita gente na cadeia.
Nesse quadro de irracionalidade coletiva, muitas pessoas podem perdem aquilo que o neurocientista António Damásio chama de “memória do futuro”, isto é, a capacidade de planejar racionalmente seu porvir. Elas se podem se tornar incapazes de tomar decisões corretas e começar a agir por impulso. Por medo e por ódio.
Às vezes, isso acontece com parte da população de países inteiros. É o caso da Grã-Bretanha, que ontem, em referendo, aprovou o “Brexit”, a sua saída da União Europeia.
Trata-se de uma decisão que, embora legítima e democrática, é inteiramente equivocada. Ela não tem o mais mínimo amparo nos fatos. Na realidade, tudo indica que o Reino Unido vai perder muito com essa decisão irrefletida.
Em primeiro lugar, o Reino Unido vai perder o acesso privilegiado que hoje tem ao mercado comum da UE. Trata-se de um mercado de 500 milhões de consumidores de alta renda, que movimenta cerca de US$ 16,6 trilhões por ano. Quase a metade das exportações britânicas de bens e serviços vai para esse mercado fantástico, sem pagar tarifas e com procedimentos aduaneiros simplificados. São ao redor de US$ 300 bilhões por ano que o Reino Unido consegue vender para o resto da Europa. Saliente-se que esse fluxo comercial intenso assegura ao Reino Unido a participação nas cadeias de produção europeias, pois dois terços dessas exportações (US$ 200 bilhões) são de bens intermediários.
Em segundo lugar, o Reino Unido vai perder também o acesso que a UE negociou exitosamente com outros mercados. São 30 acordos comerciais que asseguram ao Reino Unido a entrada facilitada num mercado que movimenta, adicionalmente ao mercado comum da UE, mais de US$ 8 trilhões por ano. Observe-se que as negociações da Parceria Transatlântica, negociada entre a UE, os EUA e o Canadá, bem como as negociações com o Japão, prometiam expandir o mercado total para os produtos britânicos a um patamar de US$ 47 trilhões ao ano.
Em terceiro, o Reino Unido deverá perder a sua condição de porta de entrada de serviços financeiros para a Europa. Com efeito, a City londrina faz a hoje a intermediação entre bancos estrangeiros, principalmente norte-americanos, e os bancos europeus. Mas só o faz por causa de sua participação na UE. Sem tal participação, a tendência é que essa intermediação financeira migre para o continente. Há de se observar, a esse respeito, que os serviços financeiros empregam 4% da mão de obra do Reino Unido e são responsáveis por 10% do PIB da Grã-Bretanha.
Em quarto, o Reino Unido perderá investimentos. Quase metade (47%) dos investimentos diretos destinados anualmente à Grã-Bretanha provém da UE. Boa parte desse volume está obviamente condicionada à integração com esse bloco.
Na realidade, os estudos econômicos mostram, sem deixar dúvidas, que a participação do Reino Unido na UE agrega, anualmente, cerca de 90 bilhões de libras esterlinas à economia britânica, cerca de 6% do PIB. Para os lares britânicos, isso significa um acréscimo de renda de 3 mil libras esterlinas por ano. Perto disso, a contribuição líquida do Reino Unido para a UE, tão criticada pelos defensores do “Brexit”, não passa de 0,4% do PIB.
Assim, a tendência, com a saída da UE, é que a economia britânica encolha. Aliás, a BMW, que hoje detém as marcas da Rolls Royce, Mini e Land Rover, já avisou que deverá rever seus investimentos na ilha.
Os defensores do “Brexit” argumentam, porém, que tudo isso poderá ser renegociado. Poderá, mas não será fácil. O divórcio não deverá ser amigável, pois a UE não quer encorajar novas defecções. Pelo artigo 50 do Tratado de LISBOA, a saída da UE tem de ser aprovada condicionalmente pelo Conselho da Europa e pelo Parlamento Europeu. Haverá retaliações e as novas negociações para o acesso aos mercados perdidos poderão durar muito, redundando em incertezas econômicas e jurídicas. Observe-se que, no caso da Suíça, as negociações com a UE duraram 16 anos.
Mas os prejuízos não são apenas comerciais e econômicos.
Há também o claro prejuízo geopolítico. Saindo da poderosa UE, o Reino Unido perderá protagonismo internacional e tenderá a transformar-se num satélite europeu dos EUA. Sozinho, o leão britânico é desdentado.
Poderão ocorrer, ademais, sérios danos políticos, no âmbito interno. Os escoceses, que votaram majoritariamente pela manutenção do Reino Unido na UE, poderão convocar novo plebiscito para sair da Grã-Bretanha e reingressar na Europa unida.
Nada disso era necessário. Muitos criticam, com razão, a burocracia de Bruxelas e a lógica financeira da integração, que penaliza, nesses tempos de crise, as economias menores do bloco. Mas a solução para esses problemas está na reforma democrática da UE, não em sua desintegração. Ressalte-se que, no caso do Reino Unido, sua participação na UE tinha características privilegiadas e especiais, pois a Grã-Bretanha não participava da Zona do Euro e do Acordo de Shengen, entre outros vetores mais rígidos e questionados da integração. O país tinha, dessa forma, bastante flexibilidade em sua participação na integração europeia. O Reino Unido não é a Grécia.
Assim sendo, a decisão de sair da UE foi tomada com base nos sentimentos retrógrados e reacionários da xenofobia, do ódio aos imigrantes, do nacionalismo exacerbado e do medo quanto ao futuro. Não foi uma decisão refletida e bem embasada. Políticos reacionários e inescrupulosos se aproveitaram do clima de insatisfação, medo e incerteza para fazer valer sua agenda retrógrada e protofascista.
Paradoxalmente, a população mais pobre da Inglaterra e do País de Gales, que votaram pela exclusão apostando numa solução nacionalista e xenófoba para a crise, será a mais prejudicada com essa decisão. Eles serão os primeiros a ficarem desempregados quando a economia britânica, grande beneficiária da integração, começar a patinar ainda mais. E não adiantará expulsar os imigrantes.
A decisão do “Brexit” foi trágica. Mas talvez não tenha sido a única.
Na República de Bananas do golpe, o novo Chanceler ensaia o nosso “Braxit” do Mercosul, outra decisão irracional, baseada em ignorância, preconceito e noções retrógradas sobre política externa.
Os britânicos costumam dizer que o common sense (o bom senso) é o least common of the senses (o mais incomum dos sensos).
No dia 23 de junho de 2016, esse adágio foi tragicamente confirmado.
Crédito da foto da página inicial: EPA/Patrick Seeger
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