A inserção internacional da economia brasileira sofreu um grave revés nos últimos sete anos. O retrocesso marca um movimento em direção ao que alguns consideram a vocação natural do País, o extrativismo de caráter imediatista e a alienação patrimonial, em um concerto de interesses estrangeiros e desinteresses nacionais.
O compromisso das forças políticas atuais com o atraso, não apenas na economia, denota a intenção explícita em reverter o pacto social civilizatório duramente obtido em 1988. Trata-se agora, e ninguém no governo disfarça, de desfigurar a Constituição Federal e desamparar a população. Os mais ambiciosos se perguntam se não seria o caso de levar a reversão do processo histórico, inclusivo e popular, não apenas a 1988, mas a antes dos anos 1930, ao fim da Era Vargas, que produziu tudo o que caracteriza o Brasil como um país respeitável.
Costumamos pensar na história, escreveu Philip Roth, como um processo longo, quando na realidade trata-se de algo repentino e cotidiano. Tomo aqui a relação entre o Brasil e a China ou, mais especificamente, duas visitas de presidentes brasileiros ao país, como a ponta do novelo destas minhas observações. A recente visita de Temer à nação asiática levou-me a inevitáveis comparações com 2011, quando estive na China para organizar um seminário de negócios durante a visita da presidente Dilma Rousseff, em abril daquele ano.
O Brasil vivia então seu momento de maior prestígio, com a continuidade de um governo que tirara o País do mapa da fome para inseri-lo no centro da geopolítica global. O aumento da atividade e do escopo de sua diplomacia levou os mais cautelosos a imaginar que dávamos um passo maior do que a perna ou, como dizem os ingleses, em tom mais elogioso, “punching above its weight”.
Tal visão não se fundamentava. O dinamismo da economia, sua diversidade étnica e cultural, suas instituições democráticas e o simples tamanho de seu território e população credenciavam o Brasil a uma atuação menos tímida do que aquela dos anos 1990. Seria necessário voltar ao início dos anos 1960 para encontrar paralelos à política externa ativa e altiva dos anos 2000.
Lula não inaugurou a promoção do comércio e investimentos como política de Estado, mas lhe atribui caráter estratégico, como parte da política de desenvolvimento nacional. O Brasil possui uma relação ambígua com o comércio internacional. Sua própria fundação deveu-se ao potencial de extração de riquezas naturais e cultivadas. Simonsen estima que o comércio ultramarino durante o auge do ciclo do açúcar, entre Brasil e Europa, superava em valor o comércio intraeuropeu.
A riqueza oriunda dessa troca voltava-se, porém, à construção de algumas igrejas, à compra de vestuário parisiense para os dias de festa e, sobretudo, à renovação da multidão de escravos que permitia a continuidade do sistema de exploração colonial. É difícil argumentar que tais riquezas tenham se convertido em desenvolvimento.
Não fossem as atribulações do século XX, guerras e crises que resultaram em restrições externas, não fosse uma série de fatores e figuras como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e mesmo tecnocratas como Roberto Campos, o País não se veria obrigado a repensar sua inserção na economia internacional.
Este contexto permitiu ou, por necessidade, levou o Brasil a um reposicionamento que privilegiava a indústria nacional e o mercado interno em substituição ao rentismo e à exportação monocultora, nunca plenamente superado.
Apesar da modernização do Estado nos anos que se seguiram, com a criação do BNDES, Petrobras, CSN, Vale, Banco Central, Embrapa, Embraer, entre tantas outras instituições necessárias à gestão estatal e à política industrial, foi apenas com o choque do petróleo que o governo viu-se obrigado a uma mudança de estratégia.
Até então, nossa política comercial era uma misto de café, Bossa Nova e Carmen Miranda. Um amigo mantinha em seu escritório no Itamaraty essa foto: Carmem Miranda a vender café em uma feira comercial em Los Angeles, chapéu de frutas, figurino completo. Outros tempos. Nos anos 1970, nem todo o café do mundo pagaria nossa conta de petróleo.
O Itamaraty desempenhou papel central no início dos esforços de exportação da indústria nacional. O slogan da época, “exportar é o que importa”, sacrificava a qualidade do trocadilho em benefício da clareza do propósito, a necessidade de divisas para fazer frente às nossas importações e ao custeio da dívida.
A promoção comercial do período era ambiciosa e não se restringia a setores ou regiões prioritárias. Vendíamos para a Europa, os EUA e o Japão, mas também para o Iraque, onde Passats produzidos no ABC paulista circulavam pelas ruas de Bagdá.
O País mudava desde então. A consolidação das instituições democráticas, somada ao fortalecimento e sofisticação de sua base industrial, permitiram um salto qualitativo na inserção econômica internacional.
Recordo aqui a visita presidencial de Dilma à China em 2011. O governo levou consigo uma considerável delegação empresarial, prática generalizada durante os anos Lula, que permite aos empresários a realização de novos negócios e, talvez mais importante, a defesa dos interesses empresariais nacionais frente a parceiros e competidores.
Soja e minério de ferro se vendem sozinhos. Construir jatos comerciais (Embraer), vender serviços de TI (BRASSCOM), internacionalizar nossas montadoras (Marcopolo, Anfavea) e nossa indústria de máquinas e equipamentos (WEG), para citar apenas algumas das empresas participantes, requer esforço. Os governos do PT reconheciam a importância deste esforço.
A recente visita de Temer ao país asiático empalidece em comparação e confirma o poeta quando diz que um fraco rei faz fraca a forte gente. Temer fez-se acompanhar de um séquito de parlamentares e assessores e, embora houvesse uma chamada “agenda comercial”, o governo brasileiro não levou consigo um executivo nacional com interesses na China.
A relação de Temer com o setor privado, cada vez mais conhecida, não parece ser republicana. É uma relação personalista, não institucional, que não envolve o apoio às empresas, mas o favorecimento a certos empresários.
No lugar de um encontro bilateral entre países soberanos, com interesses às vezes mútuos, às vezes conflitantes, o Brasil que foi à China apresentou-se como uma colônia em potencial. A lista de projetos de privatizações e concessões, panaceia da atual equipe econômica, será certamente apreciada pelos chineses, que agradecem. No contexto da crise econômica e fiscal que o País atravessa, significa apenas vender o almoço pra comprar o jantar.
Para não ser injusto, recordo aqui a presença talvez do único empresário na delegação de Temer, Blairo Maggi, o rei da soja. É notável. O subdesenvolvimento, dizia Celso Furtado, é um projeto, não um acidente de percurso. E é este o projeto em pleno curso no País de hoje. Engana-se quem espera que um próximo ciclo de commodities, a maior falácia para explicar o êxito dos anos recentes, venha a retomar um ciclo de crescimento.
O Brasil vive entre ciclos de exportação ao menos desde 1600, mas apenas após os anos 1930 experimentamos um arremedo do que se pode chamar desenvolvimento. Uma próxima recuperação da soja, sem as políticas econômicas e desenvolvimentistas que marcaram os governos petistas, vai enriquecer pouca gente além de Maggi.
*Julio de Oliveira Silva é economista e diplomata e, até a publicação deste artigo na Carta Capital, vice-cônsul do Brasil em Nova York. Depois da publicação, foi removido do cargo.
Crédito da foto da página inicial: EBC
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