É um tanto lamentável como a importantíssima e bela história de luta pela conquista do voto das mulheres foi transformado no filme “As Sufragistas”(Suffragette, Inglaterra, 2015) em um conto insosso para burguês ver. A começar que a diretora Sarah Gavrone e a roteirista Abi Morgan se limitam a contar aspectos particulares do que ocorreu entre 1910 a 1913 (!!!), desconsiderando décadas de luta das mulheres que se estendiam, pelo menos, desde meados do século 19.
Só para lembrar, quando chegou pela primeira vez à Inglaterra, em 1842, Engels ficou fascinado com a explosão de revoltas operárias de todo o tipo com que se deparou e, naquele contexto, foi fortemente influenciado por algumas mulheres em especial.
A primeira delas, sua companheira Mary Burns, que, apesar de analfabeta, com apenas 19 anos, já se destacava como liderança nos guetos de trabalhadores de origem irlandesa em Manchester. Foi graças a ela que Engels teve acesso livre às vielas insalubres e violentas onde viviam os operários da cidade e nas quais um homem da burguesia como ele jamais poderia circular.
Depois, foi fundamental o contato que teve com a escritora Elizabeth Gaskell – que morava também em Manchester e se dedicava a escrever romances, como Mary Barton (1848), nos quais retratava, por meio de inéditas protagonistas femininas da classe operária, as opressivas condições das mulheres e dos trabalhadores em geral nas cidades indústrias da Inglaterra.
Pouca gente se dá conta, mas de acordo com ninguém menos que Adam Smith, de meio milhão de operários que trabalhavam nos moinhos da Inglaterra ao final do século 18, 39% eram mulheres, 31% eram crianças (sob a esfera de atenção das mulheres) e apenas 30% eram homens (1).
Portanto, a história de emancipação da classe operária inglesa se confunde com a própria história de emancipação das mulheres ao longo da era moderna. Ao lado dos “Cartistas” (Chartists), que reivindicavam o fim do voto censitário entre os homens, as lutas em prol do direito dos trabalhadores, da jornada de oito horas, das restrições ao trabalho infantil, do descanso semanal aos domingos etc. eram também, em grande medida, luta das mulheres.
Nesse sentido, a gloriosa história das sufragistas é um dos desfechos civilizatórios desse processo, assim como o Labour Party (pai – ou mãe? – de todos os partidos trabalhistas do ocidente) deve à luta e à politização promovida pelas operárias britânicas parte importante do amálgama político que levou a sua fundação, em outubro de 1900 – aliás, é bastante simbólico que a primeira lei aprovada por um deputado trabalhista no parlamento da Grã-Bretanha tenha sido o Educational Act, em 1906, estabelecendo refeição gratuita para as crianças nas escolas britânicas.
Tudo bem, alguém poderá argumentar que as autoras do filme queriam se limitar apenas à luta específica das sufragistas. Claro, esta seria uma opção, mas que o fizessem ao menos apontando melhor suas origens, como, por exemplo, a partir da fundação da Liga Franchise de Mulheres, em 1889, sob a liderança da mesma Emmeline Pankhurst (interpretada por Meryl Streep), que no filme aparece quase como uma inspiração divina, destituída de qualquer contexto, a iluminar da janela de um lar burguês o caminho da libertação feminina.
É uma pena. O filme dá de ombros a tudo isso, e na medida em que despolitiza a história, reduz o feito das sufragistas às agruras familiares e circunstanciais de meia dúzia de moças corajosas de coração bom.
Em tempo: a quem interessar e tiver a oportunidade, vale um passeio pelo Museu da História do Povo, em Manchester, onde muitos detalhes dessa história estão fartamente reconstituídos.
Nota
(1) Green, 2008, p.72.
Crédito da foto da página inicial: Divulgação
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