É preciso superar a dicotomia falaciosa de “industrialização x inclusão”, comum no debate público sobre o tema do desenvolvimento. Nenhuma inclusão duradoura é possível sem industrialização sistemática e a nacionalização dos centros de acumulação.
Desde os mercantilistas, sabe-se que a indústria é a atividade produtiva de maior complexidade e retorno produtivo. Mesmo para Adam Smith, pai do liberalismo, logo no primeiro capítulo de seu A Riqueza das Nações[1], o que distinguia as nações mais opulentas das menos era a superioridade das primeiras na indústria manufatureira, mais complexa que a agricultura.
Mais adiante, na mesma frase em que se refere à “mão invisível”, o autor afirma que essa só seria possível se a indústria nacional fosse preferida à estrangeira. Não é difícil entender o porquê disso. A industrialização levada a cabo por empresas nacionais, acarretando um processo produtivo mais complexo e diversificado que o de outras atividades (como a agricultura), produz bens de maior valor, cria e aumenta os recursos materiais existentes em um país, ampliando as bases internas de acumulação e de decisão sobre a produção.
Gera, assim, efeito cascata positivo, multiplicando serviços nos mais diversos setores e ampliando as vagas de emprego, as chances de vida e as oportunidades para um número cada vez maior de pessoas. Não há como chegar ao mesmo resultado, ainda mais em um país com mais de 200 milhões de habitantes, continuando no caminho atualmente seguido pelo Brasil, de especialização em atividades de baixíssima complexidade e de nenhum retorno social, como agronegócio, especulação e “empreendedorismo” barato, que na prática constitui a precarização do trabalho no setor informal.
Mas a industrialização, sendo condição necessária para a melhoria das condições sociais, não é suficiente, vide a experiência desenvolvimentista da ditadura militar brasileira. É preciso que a política industrial seja atrelada à política social, de modo que ambas se retroalimentem, ainda mais em um país tão desigual e com tantos pobres e miseráveis como o Brasil.
Porque sem o Estado investindo pesado em habitação, saúde, educação para todos e intervindo nas relações de trabalho para assegurar que os salários e as condições de trabalho sejam minimamente decentes (só ele pode fazer essas coisas, porque não dão lucro imediato, que é sempre o objetivo da empresa privada), não só as desigualdades aumentarão e os benefícios materiais serão reduzidos a um minúsculo grupo de proprietários e técnicos, estrangulando a demanda e obstruindo a criação de um mercado interno dinâmico capaz de conferir maior autonomia ao país e suas empresas frente aos ciclos econômicos internacionais.
A formação de capital, as oportunidades de investimentos e o aproveitamento dos recursos humanos e físicos do país também serão menores, dado que a marginalização de amplos segmentos populacionais constitui um gigantesco desperdício de futuros e de possibilidades de desenvolvimento material, social e cultural.
Quando inúmeros talentos, mentes e braços, capazes de dar uma contribuição significativa ao enriquecimento da vida em comum, são condenados a uma existência abaixo da condição animal por fatores estruturais de exclusão, toda a coletividade é prejudicada e nenhum desenvolvimento é possível.
Outras reformas do lado da oferta, como investimentos em infraestrutura e o barateamento e a ampliação do crédito produtivo, por sua vez, são cruciais para articular o desenvolvimento produtivo ao social, uma vez que estimulam a geração de empregos e contribuem para reduzir os custos das mercadorias e ampliar sua produção, mantendo a inflação em níveis reduzidos sem prejuízo do pleno-emprego e do aumento do poder de compra e do bem-estar da maioria da população.
Mais uma vez, e em consonância com a experiência histórica de todos os países hoje desenvolvidos, cabe ao Estado um papel privilegiado no fornecimento e na manutenção da infraestrutura (energia, transportes, comunicações, por exemplo) e do crédito, destinando-os à produção e ao bem-estar de todos. Essa primazia estatal deve ocorrer em função de essas atividades serem, em curto prazo, demasiado onerosas para o setor privado, além de estarem vinculadas à segurança nacional do país, dado o seu caráter estratégico. O próprio Adam Smith, para citá-lo mais uma vez, reconhece a importância de o Estado responsabilizar-se pela construção e manutenção de estradas, portos, pontes, canais e comunicações, além da educação pública, e de direcionar o crédito para atividades produtivas em vez de especulativas[2].
A noção de desenvolvimento aqui elaborada parte de um pressuposto incomum na ortodoxia econômica, o de que a verdadeira riqueza de um país consiste não no montante de riqueza financeira expresso nos índices quantitativos e abstratos de crescimento do Produto Interno Bruto e da renda per capita, mas no conjunto dos recursos humanos (população, cultura, conhecimentos), físicos (natureza, meios de produção, infraestrutura, bens e serviços) e territoriais de uma nação. Tais índices não dizem necessariamente respeito ao modo de organização da produção e do trabalho reais, e podem ser expandidos inclusive de maneiras antissociais como o rentismo ou o consumo conspícuo de minorias privilegiadas[3].
O que se tem em vista é o aspecto qualitativo do modo como a nação, em sua totalidade, consegue aperfeiçoar seus meios produtivos por meio da industrialização e, ao mesmo tempo, incrementar a qualidade de vida dos seus cidadãos, realizando os ideais morais da liberdade, da igualdade e da fraternidade no processo de desenvolvimento.
Desloca-se, assim, o objeto da economia, da maximização de utilidades financeiras e abstratas em atividades especulativas voltadas apenas para o enriquecimento de oligarquias improdutivas, para a criação de novos valores de uso, a melhoria das condições materiais de existência da população e o engrandecimento da nação.
Essa compreensão de economia só pode ser alcançada tendo em conta a centralidade do aspecto político da organização material de qualquer sociedade, ou seja, do modo como a coletividade nacional é organizada e seus recursos são distribuídos. Como afirmou o filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, em seu livro A Sociologia dos Países Subdesenvolvidos, “o fator político constitui o mais precioso recurso da nação teoricamente dependente” (p. 295), pois é a partir desse recurso, em especial na dimensão nacional da soberania, que é possível conduzir o desenvolvimento tal como aqui defendido, como uma política de reorganização produtiva e social de modo a viabilizar a inclusão e a ampliação da capacidade criadora do ser humano dentro do território no qual tal soberania pode ser exercida, no nosso caso, no Brasil.
Não é, entretanto, simples alcançar tudo isso, ainda mais em nosso país. As relações de dependência historicamente constituídas entre as oligarquias brasileiras e os comandos monetários, financeiros e militares do Atlântico Norte, em especial dos EUA, emperram a marcha do desenvolvimento pela subordinação dos recursos nacionais aos interesses forâneos. A passagem, em nosso país, do capitalismo comercial para o industrial e desse para o financeiro (em curso atualmente), não significou a superação definitiva dos vínculos coloniais, mas sua atualização e incorporação em novas bases institucionais, sendo a população brasileira sempre duplamente explorada, para atender aos interesses das oligarquias nacionais e das estrangeiras.
A modernização que ocorre nesse percurso é reflexa e conservadora do atraso, expressando relações sociopolíticas arcaicas por meio de formas miméticas de consumo e comportamento por parte de grupos privilegiados, em geral mais identificados existencialmente com os centros metropolitanos mundiais do que com a sua própria pátria. O padrão de desenvolvimento recorrente na história do Brasil serviu não como realização das potencialidades coletivas nacionais em bases igualitárias e autônomas, mas para a manutenção do subdesenvolvimento e dos privilégios estamentais e de classe de grupos oligárquicos cujo controle das instituições domésticas refletia sua dependência para com os comandos capitalistas estrangeiros[4].
O Estado, que em todos os países centrais constitui-se como líder e coordenador do desenvolvimento, frequentemente opera no Brasil como fiador em última instância do subdesenvolvimento e da dependência, mobilizando seus recursos de coação para impedir, pela prisão e/ou pelo golpismo, todos os líderes defensores de um desenvolvimento autônomo e popular por meio de um modelo alternativo de Estado, voltado para o atendimento das demandas nacional-populares, como José Bonifácio, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Lula e Dilma.
Para que a industrialização inclusiva e soberana, ou seja, o desenvolvimento nacional, seja possível no Brasil, é preciso que haja uma grande mobilização popular contra o subdesenvolvimento e as relações de dependência que condenam o Brasil a uma posição periférica no mundo e boa parte dos brasileiros a uma vida de privações e de exploração implacáveis. Sem a conquista da soberania nacional e a remodelação do Estado para que sirva como instrumento-chave do engrandecimento do país como um todo e não do seu apequenamento e subordinação, como ocorre hoje, qualquer tentativa de fazer do Brasil um país mais próspero e justo será abortada e condenada.
Notas
[1] SMITH, Adam. An Inquiry Into the Causes of the Wealth of Nations. Chicago: William Benton, 1952. As partes comentadas estão nas páginas 4 e 194.
[2] Ibid., p. 153-4; p. 315-57.
[3] Para uma discussão bastante interessante a respeito, cf. PINTO, Álvaro Vieira. A Sociologia dos Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
[4] Para uma discussão a esse respeito, cf. FERNANDES, Florestan. Problemas de Conceituação das Classes sociais na América Latina. In: ZENTENO, Raúl Benítez (coord.). As Classes Sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
Crédito da foto da página inicial: USP Imagens
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