A greve nas universidades, como esta ora em curso nas estaduais paulistas, sempre provoca reações controversas e conflitantes. Muitos se perguntam − mesmo aqueles que consideram esse método de luta legítimo e que se manifestam favoravelmente às reivindicações apresentadas pelo movimento grevista − se a greve é a melhor forma de se defender a universidade, se o momento é adequado para se entrar em greve, se a natureza das reivindicações justifica uma greve, se a greve não prejudica seus próprios participantes − ao invés de afetar terceiros, e assim por diante.
Muitas são as questões que poderiam ser aqui elencadas. Partindo do suposto de que todas elas são legítimas e pertinentes, e de que aqueles que as formulam o fazem em nome da preocupação com a universidade pública, gostaria de discutir alguns aspectos relacionados a esse tema.
Piquetes e barricadas, assim como ocupações, integram o repertório de ação do movimento sindical e são tradicionalmente presentes em greves, mas despertam interpretações as mais variadas. As interpretações contrárias as consideram como atos autoritários e antidemocráticos, pois praticados por minorias organizadas que impediriam o direito de ir e vir. Essa visão é bastante recorrente na universidade, espaço de diversidade e de reflexão, onde não caberiam ações que supostamente representam uma recusa ao diálogo.
Essa recusa ao diálogo parece ser tanto maior quando coloca em lados opostos professores e estudantes, na medida em que questiona as relações de poder, as bases da autoridade e do saber docente. As críticas mais contundentes consideram piquetes, barricadas e ocupações como uma forma de intimidação e de violência física ou simbólica e, não raro, veem aqueles que as promovem como baderneiros, vândalos ou inconsequentes, que limitam o acesso ao patrimônio público e/ou participam de sua depredação.
É compreensível que professores se sintam hostilizados e atingidos em sua dignidade enquanto trabalhadores impedidos de ensinar, de pesquisar e de contribuir para o imprescindível avanço do conhecimento. Afinal, acreditamos que nosso trabalho é a melhor forma de defendermos a educação e a universidade pública. Mas não seria possível interpretar piquetes, barricadas e ocupações de outra maneira?
Se mediante o uso dessas formas de luta parece que os estudantes estão nos tratando como inimigos, precisamos reagir na mesma moeda, tratando-os como inimigos também? Precisamos deslegitimar seu movimento, rebaixar seu conhecimento, ridicularizar suas propostas, tratá-los como pessoas imaturas que precisam ser punidas exemplarmente para aprender a respeitar as regras da universidade, a hierarquia acadêmica, a sabedoria dos mais velhos? Proponho aqui um ponto de vista distinto, com o intuito de estimular o debate com os colegas.
Ao apresentar a questão a partir de um ângulo diferente, torna-se possível tomar atitudes que parecem uma recusa ao diálogo como um convite ao diálogo; tomar esse momento de interrupção da rotina − mesmo que esteja se tornando cada vez mais frequente − como uma oportunidade de escuta, na medida em que nos apresenta demandas que, muitas vezes, desconhecemos.
Os piquetes possibilitam que mais pessoas tomem contato com os problemas identificados e as mudanças almejadas por diferentes segmentos de nossa comunidade acadêmica, desencadeando uma peculiar dinâmica de produção coletiva de demandas. Além disso, possibilitam que aqueles que temem represálias por parte de nós, professores (na condição de chefes e avaliadores que somos do trabalho de funcionários e estudantes) possam aderir à greve e convencer seus pares a fazer o mesmo. Nesse sentido, se a interrupção das aulas, muitas vezes por estudantes de uma unidade estranha à nossa, pode ser vista como uma medida de força, ela se dá como uma resposta a nosso poder de controlar frequência, de aprovar e reprovar estudantes e de gerir a universidade.
Ao nos interpelar mesmo quando não estamos em greve, os piquetes nos exigem uma resposta. Se no nosso dia a dia podemos ser indiferentes a várias visões e concepções de universidade, os piquetes nos incitam a superar nossa indiferença justamente porque dão visibilidade àquilo que resistimos a enxergar.
Ao afetar nossas atividades cotidianas, eles nos sinalizam que é preciso despender tempo e encontrar espaço em nossas agendas sempre tão sobrecarregadas para ouvir preocupações e projetos que não necessariamente são os nossos, mas que também dizem respeito à universidade e ao lugar que nela ocupamos. Enfim, ao invés de responder àquilo que pode nos parecer violência com mais violência, de nos sentirmos agredidos por críticas e barreiras físicas, é possível acolher as diferenças e promover um debate em torno das diferenças, mesmo que não concordemos com as reivindicações apresentadas, as posições defendidas ou as formas de luta empregadas.
Podemos nos perguntar: mas e aqueles que querem ter aulas e trabalhar? Esta indagação dá lugar a várias outras: o direito de ir e vir, de ter aulas e de trabalhar, que são direitos exercidos no plano individual, são mais importantes do que um direito coletivo como a greve? Quando contrapomos direitos individuais aos direitos coletivos, defendendo a prevalência dos primeiros sobre os segundos, não estamos, na prática, impedindo o exercício do direito de greve e legitimando a figura do “fura greve”? Penso que este constitui um aspecto importante para nossa reflexão e que deveríamos aprofundar.
E quanto àquilo que pode nos parecer autoritarismo da minoria, como reagir? Também aqui não me parece que a indiferença de maiorias circunstanciais ou uma postura punitiva sejam a solução. Não se trata de assumir uma perspectiva paternalista, de “passar a mão na cabeça dos estudantes”, como tantas vezes escutamos nos corredores, mas de assumir uma posição a um só tempo formativa e democrática, que se construa no diálogo e no respeito às diferenças.
A greve é um direito coletivo, cabendo a uma assembleia a decisão de deflagrá-la e a definição das formas de conduzi-la. Muitos dirão que as assembleias − de professores, funcionários ou estudantes − não são representativas porque reúnem um percentual pequeno das categorias que se propõem a representar. Deixando de lado o fato de que esse tipo de interpretação reduz a ideia de representação a uma razão de ordem numérica, desprezando as dimensões política e sociológica da relação de representação, cabem aqui algumas considerações.
Como podemos acusar esses fóruns e entidades de não serem representativos se deles não participamos, se mal conhecemos nossos interlocutores, se desprezamos seus argumentos porque embasados em uma lógica distinta da nossa? Para sermos consequentes com um posicionamento democrático, podemos estimular a participação nos fóruns e entidades constituídas para representar nossas respectivas categorias, pois um coletivo não se define de forma abstrata, tampouco corresponde à mera soma de indivíduos. Um coletivo que se põe em movimento requer o confronto permanente de ideias e opiniões divergentes, de modo que as decisões possam ser construídas coletivamente, nos espaços destinados a essa construção.
O exercício da democracia é difícil, delicado, mas necessário. Judicializar o problema não resolve a questão e deixar que terceiros intervenham (a Justiça, a polícia e outros agentes externos à universidade) não elimina os impasses, tampouco soluciona o conflito.
Campinas, 16 de junho de 2016.
Crédito da foto da página inicial: César Rodrigues/A AN/ Correio Popular
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