Publicado no Valor em 21-11-2014
Em artigo recente, publicado no Valor de 27 de outubro, os economistas Marcos Lisboa e Carlos Eduardo Gonçalves discutem o “espantalho da crítica heterodoxa”. Com esta expressão designam as réplicas de economistas ditos heterodoxos às críticas ortodoxas direcionadas à gestão econômica levada a cabo nos últimos cinco anos.
Marcadamente, as críticas ortodoxas orbitam em torno de três pilares: 1- excesso de intervenção pública, a qual é longeva, voluntarista e opaca; 2- falta, ou completo abandono, de rigor fiscal e 3- leniência da política monetária com a inflação. O resultado da conjunção destas características seria a estagnação da produtividade, o desequilíbrio fiscal e o recrudescimento inflacionário, que estariam comprometendo o crescimento econômico sustentado da economia brasileira.
A defesa heterodoxa, para os autores, seria uma réplica que busca distorcer as críticas ortodoxas, colocando-as sob um mesmo chapéu de austeridade fiscal e de reformas pró-desigualdade. Por meio dessa dissimulação, a heterodoxia estaria se isentando de responder efetivamente às críticas, evitando confrontar os pontos apontados como problemáticos.
Esta generalização da “heterodoxia” não permite identificar efetivamente quem ou que autores estariam reagindo desta forma e os colocam sob uma mesma designação. A heterodoxia é, porém, menos um conjunto uníssono de vozes e mais uma variedade ampla de timbres e linhas melódicas, que não se harmonizam num canto único, nem na defesa, nem na crítica das políticas governamentais.
Em termos gerais, a “nova” matriz econômica brasileira não representa nenhuma grande novidade, exceto pelo papel reservado à taxa de câmbio no controle inflacionário e na manutenção da (já deprimida) competitividade da indústria: ela, em alguma medida, deixou de ser a principal variável de ajuste utilizada, sob pena de ser jogada a derradeira pá de cal sobre a indústria de transformação nacional.
A liberalização comercial e financeira continua em voga, o regime de responsabilidade fiscal e de superávit primário constrange anualmente as decisões públicas e o regime de metas de inflação opera em plenitude – vide a decisão do Copom, em 29/10/14, a favor da elevação da taxa Selic, reagindo às últimas decisões do Banco Central americano.
Pode-se efetivamente argumentar que houve uma maior flexibilização na condução da política econômica de modo geral e que as políticas industriais e setoriais tenham ido significativamente mais longe durante o governo Dilma do que nos anteriores, como o fazem Lisboa e Gonçalves. Entretanto, o que foi posto em prática não representa nenhuma ruptura efetiva com a estratégia de desenvolvimento anteriormente traçada ou com o arcabouço previamente estabelecido.
As mudanças difundidas nos últimos governos do Partido dos Trabalhadores podem ser enquadradas numa definição de liberal-desenvolvimentismo (expressão tomada de empréstimo do professor Brasilio Sallum Jr.), em linha com aquelas iniciadas na segunda gestão de Fernando Henrique. A diferença, no entanto, reside na intensidade da leniência com a intervenção estatal.
A prioridade continua sendo a estabilização inflacionária, entendida como um sinônimo da estabilização econômica em geral, porém ganham maior peso nas decisões de política os efeitos potencialmente destrutivos das políticas anti-inflacionárias, o que se materializa na operação mais “flexível” do arcabouço de política econômica e intervenções mais perenes do Estado no sistema produtivo.
São medidas compensatórias, porém relevantes para conquistar um prestígio popular de uma massa que não tem mais como parâmetros o completo descontrole inflacionário, a desordem econômica e a profunda desigualdade, que cristalizaram em meados da década de 1990 uma convenção em prol da estabilização econômica pautada pelo neoliberalismo.
O período de relativo crescimento econômico, melhora no emprego e das desigualdades vivenciado ao longo da década de 2000 é incapaz de validar e disseminar socialmente a necessidade de políticas extremamente austeras em relação à inflação – e ao orçamento público.
Os parâmetros mudaram: a manutenção do emprego e da renda e a continuidade do processo de redução das desigualdades são agora os condicionantes, o que justifica a adoção contínua das medidas “compensatórias”. E isto ficou claro através do resultado das urnas no último dia 26 de outubro, com o apoio político manifestado à reeleição da presidente Dilma.
Os professores Lisboa e Gonçalves destacaram que “o que definitivamente não existe são países ricos com políticas macro e microeconômicas de viés heterodoxo com a extensão adotada no Brasil nos últimos cinco anos”. Entretanto, eles não mencionam que o que igualmente não existe são países ricos nos quais o emprego e a renda foram preservados com igual sucesso do Brasil nos últimos cinco anos. E que, além disso, na contramão destes países, também avançamos na redistribuição de renda, mesmo diante da pior crise econômica internacional dos últimos tempos.
A frustração de uma das possíveis críticas heterodoxas é justamente não ir além. Ir além e tentar estabelecer efetivamente um novo arcabouço de política onde emprego e renda não fossem subprodutos ou alvo de políticas compensatórias, mas estivessem no núcleo e configurassem o objetivo maior das políticas econômicas.
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