Artigo em parceria com a Plataforma Política Social e Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI, publicado na Revista Política Social e Desenvolvimento #24
A ponderada avaliação de um conjunto de indicadores do mercado de trabalho no Brasil, desde o início do primeiro governo Lula em 2003, sugere uma perspectiva de significativas e desejáveis transformações.
Entre os anos de 2003 a 2014, a despeito das flutuações do nível de atividade econômica, o Brasil viveu um período caracterizado, dentre outros fatores por: i) aumentos importantes do salário mínimo real; ii) ampliação da formalização das relações de trabalho; iii) redução dos níveis de desemprego; iv) evolução positiva da estratificação dos ocupados; e v) diminuição das desigualdades dos rendimentos do trabalho.
Entretanto, ao nosso juízo, todas essas conquistas ainda são, por um lado, muito tímidas frente à dimensão estrutural dos problemas que marcam o mercado de trabalho no Brasil; e, por outro, muito frágeis, podendo ser revertidas em breve tempo.
Assim, para melhor apreciação das mudanças que se verificaram nos últimos anos, dispomo-nos a tratá-las em diferentes dimensões.
Num primeiro momento, é útil avaliar a dinâmica do emprego no período de análise, observando indicadores sobre a criação líquida de postos de trabalho, a evolução do estoque de ocupados em empregos formais e as taxas de desemprego.
Assim, a partir do estoque total de empregos formais em 2002, de quase 28,7 milhões de empregos, a criação líquida de 20,3 milhões de novos postos de trabalho entre 2003 e 2013 significou crescimento de 70,7%, ou seja, taxa média anual de crescimento de 5,0% do volume de emprego. Esse resultado é ainda mais impressionante, quando se calcula a taxa média de crescimento da População Economicamente Ativa no mesmo período, de 1,4% ao ano.
Outro importante indicador é a taxa média anual de desocupação nas regiões metropolitanas do Brasil, entre 2003 e 2014, a partir dos dados da PME do IBGE. O comportamento desta série apresenta uma redução das taxas de desocupação quase monotônica, passando em 2003, de um patamar de 12,3%, para uma taxa de 4,9% de janeiro a abril de 2014, o que significa uma redução de 60,2% no período.
Finalmente, é útil observar os resultados da decomposição das taxas de desemprego com base nas mudanças nos contingentes populacionais da PIA, PEA e dos ocupados: a cuidadosa análise destes anos robustece a apreciação de que a queda do desemprego deveu-se sobremaneira ao crescimento dos ocupados no mercado de trabalho.
No que respeita os rendimentos do trabalho aponta-se que ao longo do período de análise, o crescimento do salário mínimo, de 76%, superou amplamente o crescimento dos rendimentos medianos, de 42%, e o dos rendimentos médios, de 31%.
Alternativamente, esse mesmo fenômeno pode ser observado a partir dos dados da evolução dos rendimentos, médio e mediano, em comparação com os valores do salário mínimo, a valores reais de agosto de 2014.
Assim, em 2003, com um salário mínimo de R$ 416, o salário dos ocupados na posição mediana era de R$ 862, ou seja, 107,2% maior, enquanto o salário médio atingia o valor de R$ 1.560, ou seja, 275,0% maior que o salário mínimo. Já em 2014, com um salário mínimo de R$ 733, o salário mediano atingia o patamar de R$ 1.223, ou seja, 66,8% maior, enquanto o salário médio, no patamar de R$ 2.050, passa a ser 179,7% maior do que o salário mínimo. Portanto, o que se constata é uma redução da distância relativa das medidas de tendência central – a média e a mediana dos salários dos ocupados – dos valores do salário mínimo.
Sem dúvida, tal fenômeno resulta, ao menos em parte, do vigoroso crescimento dos salários mínimos no período, que não teria sido acompanhado por reajustes da mesma ordem nos salários dos ocupados com rendimentos superiores a um salário mínimo.
Sabe-se que a distribuição dos ocupados no Brasil segundo as classes de rendimentos é bastante assimétrica, com uma parcela muito ponderável dos trabalhadores concentrados nos estratos de menor remuneração. Nesse mesmo sentido, é possível constatar que no período de 2003 a 2013 houve um expressivo crescimento do saldo líquido de empregos para os ocupados nos segmentos de mais baixos salários.
A seguir, é importante voltar-se para a análise de alguns indicadores selecionados sobre a evolução da formalização das relações de trabalho no Brasil, segundo a posição na ocupação e principais setores de atividade.
Num estudo recente e meticuloso, Krein e Manzano (2014) reúnem um conjunto de estatísticas que evidenciam a inequívoca redução da informalidade nas relações de trabalho no Brasil de 2003 a 2012, no sentido inverso ao que se produz em um conjunto de países desenvolvidos, presas de ajustes recessivos, de medidas de flexibilização e de precarização das relações laborais.
Destaca-se que os resultados da taxa de formalidade agregada apresentam um comportamento crescente monotônico. Se tomarmos o ano de 2002 como base, veremos que a taxa de formalidade, que em 2002 era de 42,7%, passa para 56,6% em 2013, ou seja, um crescimento de 13,9 pontos percentuais.
Entre todas as posições na ocupação representadas, os comportamentos de maior destaque sucedem no segmento dos empregados com carteira e dos trabalhadores por conta própria.
No que tange aos resultados da formalização em seu aspecto setorial, os dados permitem concluir que ao tomarmos o ano de 2012 como referência, a indústria apresentava taxas de formalidade de 78,9%, superiores em 13,6 pontos percentuais às dos serviços (65,3%) e impressionantes 38,1% superiores à taxa apresentada pelas ocupações agrícolas (40,8%).
De qualquer forma, ao longo do período de análise, é mister constatar que em todos os setores de atividade o crescimento da formalização em termos de pontos percentuais foi da mesma ordem de grandeza: 10,3% na indústria, 10,0% nos serviços e 11,4% na agricultura.
Bônus demográfico
Um fenômeno de grande importância atravessa as transformações recentes no domínio da demografia: o período recente presenciou uma expressiva redução do ritmo do crescimento populacional, em razão da queda das taxas de fertilidade e de natalidade e do aumento da esperança de vida no Brasil. Ademais, ganha relevo a rápida mudança no perfil etário da população que proporciona transitoriamente o que se convencionou chamar de “bônus demográfico”, com importantes desafios às políticas públicas.
Assim, se no caso brasileiro vivemos um período de redução da razão total de dependência que alcançará seu patamar mínimo em 2020, não se pode descurar do fato de que esse “dividendo demográfico” constitui um fenômeno transitório, oferecendo a oportunidade para a melhoria da qualidade de vida, da redução dos níveis de pobreza e de desigualdade.
O envelhecimento populacional, contudo, compõe uma face particular da transição demográfica: com sua progressão, o “bônus” ou “dividendo” demográfico vai-se esvaindo. Portanto, é quase intuitivo extrair daí implicações as mais fundamentais em termos de saúde pública e de previdência.
Sem entrar no detalhamento dessas implicações, pode-se dizer que seremos um país envelhecido com necessidades que constituirão rubricas progressivamente mais pesadas tanto nos orçamentos das famílias como no do Estado. Por isso, se sugere que tirar proveito desse bônus, antes que esse processo avance, é tarefa que recai sobretudo sobre os poderes públicos.
Finalmente, deve-se destacar o fenômeno, ao longo dos anos de análise, da redução das desigualdades, especialmente no que diz respeito à transformação da estrutura socioeconômica brasileira, com a expressiva redução do contingente populacional vivendo na condição de miséria, a diminuição das desigualdades de rendimento do trabalho e mudanças no perfil ocupacional que se apresentaram significativas no período em questão.
Ao longo dos últimos vinte anos, a confluência de uma série de ações de políticas públicas e das conjunturas macroeconômicas e setoriais permitiram ao Brasil assistir a um fenômeno singular de ascensão de dezenas de milhões de pessoas das condições mais degradantes da miséria para patamares de padrões de vida mais dignos.
Assim, voltamos a reiterar nossa impressão de que, se não se pode negar que são alvissareiras as recentes transformações, é mister reconhecer a insuficiência delas ante a brutal dimensão dos problemas estruturais e das desigualdades que ainda marcam o mercado de trabalho no Brasil; e, por outro lado, a fragilidade das mesmas transformações. Para evitar o risco de uma reversão dessas tendências recentes, é preciso aprofundar e consolidar políticas sociais inclusivas, além do fortalecimento do mercado de trabalho e de medidas redistributivas.
Finalmente, propomos que o que se deve ter em mente e o que deve nortear a ação da pesquisa econômica sobre esses aspectos fundamentais do desenvolvimento é o reconhecimento de que ainda estamos diante de uma oportunidade – demográfica, econômica e política – para se determinar o “projeto de futuro” que queremos para o Brasil. É mais do que tempo de ousar.
Título original do artigo: “Elementos demográficos, da estrutura ocupacional e da desigualdade no mundo do trabalho: notas para uma análise das mudanças recentes no Brasil”
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