O governo golpista do Brasil, juntamente com seus sócios paraguaios e argentinos, decidiu não reconhecer a presidência pro tempore da Venezuela no Mercosul. Além disso, agora se recusa a participar de quaisquer reuniões ou atividades presididas pela Venezuela.
Ora, o governo golpista não pode deixar de reconhecer a presidência da Venezuela, pois ela está prevista claramente na normativa do bloco. O artigo 12 do Tratado de Assunção, que fundou o Mercosul, estabelece que a Presidência do Conselho se exercerá por rotação dos Estados Partes e em ordem alfabética, por períodos de seis meses. Por sua vez, o Protocolo de Ouro Preto, que definiu, em 1994, a estrutura institucional do Mercosul, estipula, em seu artigo 5, que a Presidência do Conselho do Mercado Comum será exercida por rotação dos Estados Partes, em ordem alfabética, pelo período de seis meses.
Trata-se de regra clara, autoaplicável e automática. Deixando a presidência a Argentina, assume o Brasil, deixando Brasil, assume o Paraguai, deixando o Paraguai, assume o Uruguai e deixando o Uruguai, como ocorreu agora, assume a….. Venezuela. O Tratado de Assunção é claro, o Protocolo de Ouro Preto é cristalino e a ordem alfabética, para os alfabetizados, é evidente.
Ao contrário da falsidade alegada pelo governo golpista brasileiro, não é necessário nenhum ato do Conselho do Mercado Comum para validar juridicamente essa rotação automática da presidência do Mercosul. Não há uma única decisão do Conselho do Mercado Comum sobre isso. Sendo a Venezuela Estado Parte do Mercosul e estando ela no pleno gozo de suas prerrogativas como membro do bloco, e está, ela tem de assumir a presidência. Essa é a regra acordada entre os Estados Partes e aprovada por seus poderes legislativos.
Mas, como se sabe, o governo golpista do Brasil não gosta muito de respeitar regras democráticas. Para quem teve o desplante de cassar mais de 54 milhões de votos, colidindo com a Constituição, afrontar tratados internacionais é como tirar doce de criança.
E, para um governo de acusados de corrupção, que cinicamente acusou a honesta presidenta Dilma Rousseff de crime para tentar se safar da Lava Jato, a exportação da hipocrisia é algo natural. Assim, o insigne Barão da Mooca, digno sucessor do Barão do Rio Branco, alega, como desculpa para sua decisão, que a Venezuela não cumprirá “disposições essenciais” à sua adesão ao bloco econômico; e que “torna-se evidente que se está diante de um cenário de descumprimento unilateral de disposições essenciais para a execução do Protocolo de Adesão da Venezuela ao Mercosul, que deverá ser avaliado detidamente à luz do direito internacional”.
Tal alegação é cômica. É de conhecimento até do reino mineral que nenhum Estado Parte do Mercosul cumpre integralmente com as normas acordadas do bloco. Nenhum. Inclusive o Brasil. Por isso, muitos protocolos e acordos importantes até hoje não conseguiram entrar em vigor. Por exemplo, o Brasil até hoje não ratificou o PROTOCOLO DE COLÔNIA PARA A PROMOÇÃO E PROTEÇÃO RECÍPROCA DE INVESTIMENTOS NO MERCOSUL. Tampouco ratificou o PROTOCOLO SOBRE PROMOÇÃO DE INVESTIMENTOS PROVENIENTES DE ESTADOS NÃO PARTES DO MERCOSUL e o ACORDO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA DO MERCOSUL, só para citar alguns. O mesmo ocorre com todos os outros membros do bloco.
Mas além de não terem ratificado vários protocolos e acordos negociados no âmbito do bloco, os Estados Partes também não cumprem, muitas vezes, as regras já em vigor. Nenhum membro do bloco, inclusive o Brasil, cumpre a Tarifa Externa Comum (TEC) em toda a sua amplitude. Mesmo as regras comerciais intrabloco muitas vezes são descumpridas. Basta olhar, a esse respeito, as inúmeras reclamações, principalmente na área comercial, que os membros do bloco fazem contra outros membros, tanto no âmbito do Mercosul, quanto até mesmo no quadro da OMC.
Portanto, quando o Brasil, Argentina e Paraguai reclamam que a Venezuela não está cumprindo ainda com todas as regras do seu Protocolo de Adesão ao Mercosul, é como assistir os rotos, bem rotos, falando do esfarrapado.
Quanto ao conflito interno da Venezuela, que é muito grave, ele não pode servir de motivo para impedir a Venezuela de assumir a presidência. Afinal, o Brasil vive situação semelhante, com o agravante de que aqui a ordem democrática já foi quebrada. Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe. Atentado grave contra o Estado Democrático de Direito. Ergo, quem violou o Protocolo de Ushuaia foi o Brasil.
Todas essas alegações ridículas do governo golpista brasileiro e de seus sócios minoritários contra a Venezuela não passam de cortina de fumaça pseudojurídica para encobrir um fim político mesquinho: suspender a Venezuela do Mercosul a qualquer custo. Repete-se no Mercosul o que aconteceu no Brasil: inventam uma regra jurídica inexistente ou interpretação estapafúrdia de uma regra para tentar justificar um fim político concreto. No Brasil, foram as “pedaladas fiscais”. No Mercosul, é essa invencionice ridícula de que a presidência rotativa tem de ser aprovada pelos demais Estados Partes. O governo golpista brasileiro conseguiu exportar o modus operandi do golpe para o Mercosul.
No entanto, o golpe no Mercosul não é apenas para tirar a Venezuela do bloco. A eventual suspensão da Venezuela é apenas meio para um fim maior.
O chanceler do governo golpista brasileiro nunca escondeu seu total desprezo pelo Mercosul e a integração regional. Segundo ele, o Mercosul foi “uma farsa”, um “delírio megalomaníaco, que paralisou a política de comércio exterior brasileira.”.
Assim, a agenda de Serra para o Mercosul é sua implosão. Ele quer acabar com a união aduaneira do bloco, de modo a celebrar, com celeridade, acordos de livre comércio com quem “realmente importa”: EUA, União Europeia, Japão etc. Ele deseja transformar o Mercosul em mera área de livre comércio, uma espécie de Alcasul escancarada à concorrência predatória das nações mais industrializadas, na qual cada país fará o que bem entender. Se a Argentina quiser fazer um acordo de livre comércio com a China, tudo bem. Se o Paraguai quiser fazer um acordo de livre comércio com os EUA, tudo bem. Dessa forma, o bloco se diluirá na “globalização” e nas “cadeias internacionais de valor”. Perderá seu sentido estratégico de propiciar inserção soberana dos seus membros no cenário mundial.
Ora, a Venezuela é, atualmente, um obstáculo a essa implosão estratégica do Mercosul. Esse é o motivo último pelo qual ela tem de ser afastada. A questão democrática e o descumprimento de regras são desculpas esfarrapadas.
O pior de tudo isso é a cegueira estratégica dos golpistas. O Mercosul, com sua união aduaneira, ainda que incompleta, é vital para nossos interesses. Em 2002, exportávamos somente US$ 4,1 bilhões para o Mercosul. Já em 2013, incluindo a Venezuela no bloco, as nossas exportações saltaram para US$ 32,4 bilhões. Isso significa um fantástico crescimento de 690%, quase de oito vezes mais, em apenas 11 anos. E cerca de 90% do que exportamos para esse bloco são produtos industrializados. Assim, esse mercado é crucial para nossa indústria. Mas vamos perdê-lo, caso a união aduaneira seja extinta.
A própria relação bilateral com a Venezuela beneficia muito o Brasil. Entre 2003 e 2012, nossas exportações para esse país irmão subiram de apenas US$ 608 milhões para US$ 5 bilhões. Nesse período, a Venezuela nos brindou com um superávit comercial acumulado de US$ 29 bilhões. Exportamos para lá desde alimentos até produtos manufaturados sofisticados. Além disso, a Venezuela é vital para desenvolvimento da nossa fronteira amazônica norte e desempenha papel fundamental para o suprimento de energia elétrica aos nossos estados da Região Norte. Por conseguinte, trata-se de uma relação estratégica para o Brasil, que não pode ser fragilizada por preconceitos políticos e ideológicos, os quais não cabem numa política externa responsável.
O governo golpista brasileiro, depois de ter dado um tiro na democracia, quer também dar um tiro no Mercosul e no pé do Brasil.
A política externa brasileira está entregue a quem quer entregar o Brasil.
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