Publicado no Viomundo e Le Monde Diplomatique em 10-6-2015
Aos poucos vai se desnudando uma estratégia que é política, não é econômica, mas que usa da economia para repor os termos de dominação de uma fração da burguesia brasileira que se beneficia do rentismo, da especulação financeira, dos juros praticados nas vendas a varejo, empréstimos e financiamentos, do aumento da taxa Selic, para ficar com a maior parte da riqueza produzida no país.
Chego a pensar que é um movimento do capital financeiro internacional que atinge nosso país, uma vez que as mesmas políticas são também impostas em Portugal, na Espanha, na Grécia, na Itália e em outros países. A amarga receita que castiga as maiorias é idêntica, vai ampliando a desigualdade por toda parte e joga contingentes cada vez maiores de trabalhadores na pobreza, mesmo nos países centrais do capitalismo.
O “livre mercado”, ou seja, a liberdade das transnacionais de agir por toda parte sem limites regulatórios que restrinjam sua voracidade e seu caráter predatório, não combina com a democracia. De um lado, esses grandes grupos econômicos, com o setor financeiro à frente, querem o maior lucro imediato e, para isso, buscam controlar as regras do jogo, mas também as transgridem, certos de sua impunidade.
De outro lado, a regulação democrática do mercado tenta impor limites a essa voracidade e se propõe a atuar em defesa de uma divisão menos desigual da riqueza, buscando pôr em prática políticas sociais capazes de garantir um mínimo de qualidade de vida a todos. Aumentar o salário mínimo, estender o cobertor da Previdência, oferecer melhorias na educação, na saúde, nos transportes coletivos e na moradia, aumentar a renda e o consumo são políticas praticadas pelo governo brasileiro nos últimos dez anos.
Como foi possível nos últimos anos que uma parcela – pequena, mas crescente – da riqueza tenha ido para os mais pobres e também melhorado a vida de todos? Porque o Estado brasileiro lançou mão de seus instrumentos indutores de um modelo de desenvolvimento para realizar essas políticas. Os instrumentos são conhecidos: no setor financeiro, a Caixa e o Banco do Brasil ampliaram sua oferta de crédito, baixaram os juros e ganharam mercado, do qual detêm hoje cerca de 55%.
O BNDES tornou-se várias vezes maior que o Banco Mundial e investe na construção da infraestrutura econômica brasileira, abrindo até mesmo espaço para a integração regional. Entre as estatais, a mais importante é a Petrobras, que amplia sua exploração do pré-sal com perspectivas excelentes de aumento de produção e rentabilidade. Sua cadeia produtiva, que envolve também seus fornecedores, é responsável por mais de 10% do PIB brasileiro. Há muitos outros exemplos, mas fiquemos por aqui.
A questão central para as elites financeiras e o capital internacional é desmontar a capacidade de o Estado brasileiro e de suas estatais agirem como indutores de um modelo de desenvolvimento que disputa recursos com o rentismo e busca afirmar sua autonomia perante os países e grupos econômicos hegemônicos.
A receita é reduzir o papel do BNDES, restringindo os repasses do Tesouro para esse banco, abrir o capital da Caixa para que ela atue como agente de mercado, realizar concessões e privatizações de bens e serviços públicos em benefício do capital privado, atacar e fragilizar a Petrobras e as cadeias produtivas que ela estimula, tentando derrubar as leis de exigências de componentes nacionais, manter o dólar baixo pela atração de recursos especulativos que entram no país para se beneficiar da taxa Selic, manter os maiores juros do mundo para as compras no varejo e combater a industrialização no país, para que este se torne dependente dos produtos feitos no exterior.
É esse o jogo político. E, para contribuir para esse jogo, nada como o Congresso conservador que o financiamento empresarial de campanhas conseguiu assegurar. A regulação democrática da economia e uma maior partilha da riqueza não interessam a essas elites.
Elas querem a continuidade do Estado patrimonialista, um governo a seu serviço e a impunidade de sempre para praticar, por exemplo, a sonegação fiscal. O Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional estima que a sonegação fiscal em 2014 tenha ultrapassado R$ 500 bilhões, um valor que, se fosse tributado, recolheria muito mais que os R$ 70 bilhões que se espera cortar do orçamento público este ano com o ajuste proposto pelo ministro Levy, sem todo o sofrimento que essa medida provoca nas maiorias.
É hora de começar a pensar se todos os empresários estão do mesmo lado. Ainda que as grandes empresas estejam também se beneficiando das taxas de juros e da Selic, como atestam seus lucros numa economia estagnada, são principalmente os setores varejistas e produtores de bens de consumo que dependem do aumento da renda para o crescimento do consumo e de suas vendas. Com eles talvez seja possível que as centrais sindicais, mobilizadas pelo crescente desemprego e precarização das relações de trabalho, possam se unir em uma plataforma objetiva, com itens de interesse comum. E defender um novo modelo de desenvolvimento.
Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
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