top of page
fundo.png
Foto do escritorNathan Caixeta

‘Salvem o capitalismo’, dizem os super-ricos

Atualizado: 15 de ago.


Os ricos têm despertado para os efeitos da desigualdade não por abnegação, caridade ou penitência, mas por verificarem a desintegração das sociedades contemporâneas à beira do fascismo

O jornalista Jamil Chade veiculou, no UOL, a carta aberta enviada por 205 super-ricos ao fórum de Davos. A carta traz uma reflexão sobre os efeitos da concentração da renda e da riqueza, apelando para esforços governamentais na direção de tributar as grandes fortunas.  O diagnóstico dos endinheirados é preciso:


“A história das últimas cinco décadas é uma história de riqueza que não flui a não ser para cima. Nos últimos anos, esta tendência tem se acelerado muito. Nos dois primeiros anos da pandemia, os 10 homens mais ricos do mundo duplicaram sua riqueza, enquanto 99% das pessoas viram sua renda cair. Bilionários e milionários viram sua riqueza crescer em trilhões de dólares, enquanto o custo de simplesmente viver está agora paralisando as famílias comuns em todo o mundo”.


O relatório Oxfam, publicado há poucos dias, vai na mesma direção:


“A própria existência de uma explosão de bilionários e lucros recordes, enquanto a maioria das pessoas enfrenta austeridade, aumento da pobreza e uma crise de custo de vida, é evidência de um sistema econômico que não consegue atender às necessidades da humanidade. Por um tempo demasiado longo, governos, instituições financeiras internacionais e elites enganaram o mundo com uma história fictícia sobre economia do gotejamento, na qual impostos baixos e altos ganhos para alguns acabariam beneficiando a todos nós, que não tem qualquer base na verdade.”


A riqueza que “flui para cima” é o sintoma fundamental da era da globalização, de políticas econômicas na contramão dos interesses sociais – a tal política do gotejamento patrocinada pelos mesmos criadores do Teto de Gastos, por exemplo.


Os ricos têm despertado para os efeitos da desigualdade não por abnegação, caridade ou penitência, mas por verificarem a desintegração das sociedades contemporâneas à beira do fascismo. Mais ainda, é um ultimato ao liberalismo, notadamente a ideologia dominante nas últimas cinco décadas.


A realidade que vivemos é síntese do modo como o sistema capitalista opera ao afirmar o indivíduo como dono de si ao mesmo tempo que entrega sua autonomia ao designo do dinheiro. O resultado dessa sociedade onde todos buscam interesses particulares é o aprisionamento da consciência social na unidimensão da utilidade.


O produto social persiste voltado ao lucro, enquanto as necessidades humanas são hiperdimensionadas como remédio aos 99% dos homens frustrados com sua existência frágil, quebradiça, dependente. Não demora para que o sujeito envolvido no próprio mundo, no pântano conectivo das redes, se sinta subjugado pelo “sistema”.


A empresa, o governo, a velocidade da mudança de costumes, as instituições sociais padronizadas em torno da autopromoção demovem a esperança na coletividade, na democracia e no diálogo.


O aparecimento de figuras que patrocinam a “verdade” ocultada pelo sistema convoca um pedido de socorro dos amontoados nos filões da invisibilidade. A debilidade do homem-comum se transforma em força combatente contra as instituições sociais. De débeis e frágeis, os sujeitos que encarnam o sentimento antissistema assistem à moderação como farsa, inculpando o contraditório pelos próprios males.


A promessa do contorno pela borda extrema da moralização é a confissão de que no campo econômico e político as respostas não bastam. A verdade oculta passa ao status dogmático de profecia contra a realidade, produzindo a bolha do fascismo disfarçada de “senso de dever”.


Os golpismos assistidos nos EUA, no Brasil, na Alemanha etc. são sintomas desse todo social esfarelado na base de consumidores-trabalhadores e inchado no topo de super-ricos. Enquanto isso, a fusão do fascismo com o liberalismo entretém a máquina em seu próprio giro: riqueza fluindo para os ricos, a sociedade se esmigalhando na medida em que a convivência entre iguais opõe as liberdades.


A liberdade tomada como extensão do homem-empresa, do homem que concorre pela destruição do diferente, que busca crédito nas próprias crenças e arremata a felicidade no leilão do egoísmo. Esse homem sobrevive nos modelos econômicos e infesta as diligências políticas. É o homo economicus.


No mundo do homem-empresa, ele funciona como máquina de desejos, como ferramenta que regula e censura o alheio, como engrenagem que escorrega independente das demais, como célula que cresce sem repartir e átomo protegido dos agitos do universo.


A falência dessa instituição é pendurada junto ao endividamento crescente que embala a valorização da riqueza. Sobra o homem real que mobiliza suas forças para sobreviver imerso na precarização e na miséria, desassistido por parte da sociedade e do Estado: “É caro demais”, “eficiente de menos”, “gera desequilíbrios”, “aumenta a inflação” tributar os ricos e atender aos pobres. Pelo menos isso nos têm informado os economistas. Na contramão, os ricos têm dito:


“Só há tanto estresse que qualquer sociedade pode suportar, só que muitas vezes mães e pais verão seus filhos passar fome enquanto os ultrarricos contemplam sua crescente riqueza. O custo da ação é muito mais barato do que o custo da inação – é hora de continuar com o trabalho. Tribute os ultrarricos e faça-o agora. É uma economia simples, de senso comum. É um investimento em nosso bem comum e um futuro melhor que todos nós merecemos, e como milionários queremos fazer esse investimento. O que – ou quem – está impedindo vocês?”


A formação da renda pressupõe a valorização da riqueza, mas a recíproca não é verdadeira. Por isso mesmo, é imperativo a atenção sobre a forma como o capitalismo permanece organizado e como seus nós, ao mesmo tempo em que se firmam na direção do progresso técnico, sufocam aqueles que são descartados do circuito riqueza-endividamento-consumo.


Os ricos estão gritando “salvem o capitalismo”, enquanto nas casernas da finança qualquer sinal de tributação de fortunas é sinal de fogo. Perigo de socialismo ou o que valha. O problema, diria Keynes, é a prevalência do útil em detrimento do bem. Os mercados opinam, determinam, se enervam. Os governos reagem com obediência.


O capitalismo é, sobretudo, um sistema de crenças movidas para um fim determinado. A principal delas é de que a apropriação privada da riqueza é um fim para o qual todo meio é válido. Inclusive, a desigualdade e a fome.


Tributar a riqueza é instalar um poder moderador. Necessitamos acabar com a ditadura dos mercados. Isso passa por mudar os valores que sustentam a estrutura de crenças da sociedade. Vou de novo com Keynes:


“Eu nos vejo livres, então, para voltar a alguns dos mais seguros e certos princípios da religião e da virtude tradicional – a de que a avareza é um vício, que a exação da usura é um mau comportamento, e o amor ao dinheiro é detestável, que caminham mais verdadeiramente nas sendas da virtude e da sã sabedoria aqueles que têm menos pensamentos para o amanhã. Nós valorizaremos mais os fins que os meios e preferiremos o bom ao útil. Nós honraremos aqueles que podem nos ensinar como apanhar a hora e o dia virtuosamente e bem, as pessoas encantadoras que são capazes de ter prazer direto nas coisas, os lírios do campo que não trabalham, nem tecem.”


Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).


Crédito da foto da página inicial: AFP

Comments


bottom of page