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Salvem a democracia

Da idade clássica à atualidade, o termo democracia foi sucessivamente usado para indicar uma das várias formas de governo ou um dos diversos modos com que pode ser exercido o poder político. Utilizado pela primeira vez por Heródoto, há quase dois mil e quinhentos anos, a significação do vocábulo tem sofrido mutações no curso da História. Etimologicamente, democracia designa a forma de governo no qual o poder político é exercido pelo povo (1).

Como é cediço, foi a Grécia o berço da democracia direta, especialmente Atenas, “onde o povo, reunido no Ágora, para o exercício direto e imediato do poder político, transformava a praça pública no grande recinto da nação” (2). Lá, os cidadãos reunidos em Assembleias populares deliberavam sobre assuntos do governo, declaravam a guerra, estabeleciam a paz, escolhiam magistrados, funcionários públicos e até julgavam determinados crimes. O Ágora na cidade grega fazia o papel correspondente ao Parlamento nos tempos modernos.

É evidente que a democracia na Antiguidade Clássica – “mais bela lição moral de civismo que a civilização clássica legou aos povos ocidentais” (3) – não se sustentou no Estado moderno, contudo, é inegável sua contribuição para a evolução da própria democracia.

A democracia clássica, síntese do pensamento liberal, consagrou a soberania popular, a divisão de poderes do Estado, a limitação constitucional à representação política e a declaração dos direitos e garantias individuais.

Para José Afonso da Silva, o conceito que se deve a Lincoln, de que “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”, apesar de suas limitações, é na essência correto. As limitações, segundo o constitucionalista, estão, notadamente, em se pretender definir democracia como “governo”, quando ela é mais do que isso: “é regime, forma de vida e, principalmente, processo” (4).

Atualmente, observa Bobbio, “democracia” é um termo que tem uma conotação fortemente positiva. Não há regime, até mesmo o mais autocrático, que não deseje ou goste de ser chamado de democrático (5).

O Brasil, como é sabido, consagrou na Constituição da República o Estado Democrático de Direito tendo como fundamento: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º, incisos I, II, III, IV e V da CR). Sendo que, de acordo com a Constituição, todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição (Parágrafo único da CR).

A soberania popular, conforme a Constituição será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

“I- plebiscito; II- referendo; III- iniciativa popular” (art. 14, I, II e III da CR).

Conjugando o parágrafo único do artigo 1º da CR com o artigo 14 e seus incisos, chega-se à conclusão de que o Brasil adotou como forma de governo a chamada “democracia semidireta”, posto que, plebiscito, referendo e iniciativa popular são institutos da democracia semidireta.

Sendo certo, como já dito, que na compreensão do Estado moderno é praticamente impossível alcançar a democracia direta como concebida pelo ideal e na prática dos gregos.

Dentre as três principais modalidades básicas ou formas de democracia – democracia direta; democracia indireta e democracia semidireta – a democracia semidireta, trata-se da modalidade “em que se alteram as formas clássicas da democracia representativa para aproximá-la cada vez mais da democracia direta”.

Contudo, observa Bonavides: “percebeu-se ser possível fundar instituições que fizessem do governo popular um meio-termo entre democracia direta dos antigos e a democracia representativa tradicional dos modernos” (6).

Apesar de todas as contrariedades, o Brasil encontra-se, hodiernamente, entre aquelas nações com democracias aparentemente fortes e a caminho de uma consolidação. A última derrota da democracia se deu com o golpe de 1964, que instaurou o regime militar ditatorial que perdurou por vinte anos. Desde o ano de 1985 o Brasil, pelo menos formalmente, vive uma democracia.

Nossos vizinhos, notadamente Argentina e Chile, tiveram alguns tropeços que colocam em xeque a democracia. Na Argentina, diversos presidentes não conseguiram completar seu mandato, entre eles Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa. No Chile, no que pesem inúmeras conquistas, vigora, ainda, a Constituição pinochetista, que impõe um regime de eleição que impede sua mudança constitucional.

Além de ser uma democracia – formal – o Brasil adotou o presidencialismo. No presidencialismo adotado, o Chefe do Poder Executivo acumula as funções de Chefe de Governo e Chefe de Estado.

O presidente ou presidenta da República é escolhido em eleições diretas por meio do voto popular. A presidenta da República Dilma Vana Rousseff foi eleita para o segundo mandato de quatro anos, com cerca de 55 milhões de votos.

Embora consolidada, a democracia brasileira é neófita, especialmente, se contar a partir do fim da ditadura militar. Não é despiciendo lembrar que o primeiro presidente eleito diretamente após a redemocratização do país, Fernando Collor de Melo, não terminou seu mandato porque sofreu o impeachment.

Leonardo Avritzer, em sua obra “Impasses da Democracia no Brasil” (7), observa que o combate à corrupção é parte integrante da agenda de democratização do país formada trinta anos atrás.

Embora não se tenha dados oficiais para apurar o nível de corrupção do regime militar, é notório que o regime autoritário, se valendo de grandiosas obras públicas com grandes empreiteiras, proporcionou desvios de vultosas quantias no referido período.

Segundo Avritzer, desde 2003 os governos do PT fizeram contribuições ao combate à corrupção: a primeira delas foi a expansão da Controladoria-Geral da União (CGU). A segunda grande inovação do governo, de acordo com o autor, foi a que levou às operações da Polícia Federal no início do governo Lula. De 2003 a 2009, o número de operações da Polícia Federal passou de 15 para 288, totalizando mais de mil até o início de 2015.

Importante deixar claro e assentado que não se pretende aqui defender o Estado penal e punitivista, mas tão somente demonstrar, para os críticos, incautos e opositores do governo petista que, ao contrário do que se apregoa, tanto no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quanto no da presidenta Dilma Rousseff, o combate à corrupção se deu de forma sistemática e implacável.

Na verdade, a corrupção, diz Jessé Souza, “é endêmica ao capitalismo – e certamente endêmica a todas as outras formas históricas de apropriação do excedente social – em todos os lugares e em todas as épocas históricas” (8).

O moralismo da classe média no Brasil, ainda de acordo com o sociólogo, sempre foi extremamente seletivo e antidemocrático. “Sua seletividade implica ver o mal sempre “fora de si mesma”, e nunca na sua própria ação cotidiana de exploração de outras classes de quem a classe média rouba o tempo, a energia e qualquer possibilidade de redenção futura” (9).

Como foi dito acima, o Brasil está no processo de consolidação da democracia. Esse processo poderá ser interrompido se no domingo próximo a Câmara dos Deputados aprovar o golpe travestido de impeachment. O preço que a sociedade pagará, principalmente os mais pobres e vulneráveis, será com o que pode representar o maior retrocesso social da história do país.

Não é demais lembrar e repetir que a presidenta da República Dilma Vana Rousseff foi eleita com cerca de 55 milhões de votos. Na democracia representativa, como a brasileira, o voto do cidadão e da cidadã tem valor fundamental. Por meio da eleição, o povo adere a uma determinada política de governo e confere, por conseguinte, legitimidade aos eleitos.

Daí porque não basta mera insatisfação popular; não basta a crise econômica de momento; não basta a vontade viciada da oposição; não basta a pressão midiática; não basta a inveja golpista do vice-presidente; não basta a vontade daquele que comanda a Câmara com desfaçatez e autoritarismo. Não, não basta.

Para que a democracia não seja afrontada, destruída e maculada e para que o Brasil continue trilhando o caminho da consolidação democrática é necessário que os deputados federais comprometidos com a Constituição da República e com o Estado Democrático de Direito votem contra o golpe. Somente assim poderão salvar a democracia.

Notas

(1)ROCHA. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. Uma reflexão jurídica sobre os fundamentos constitucionais das democracias semidiretas: plebiscito e referendo. Disponível em: http://periodicos.cesg.edu.br/index.php/direitoconstitucional/article/view/195/272.

(2)BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

(3)BONAVIDES, ob. cit.

(4)SILVA, José Afonsa da. Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

(5)BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Organizado por Michelangelo Bavero; tradução Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

(6) BONAVIDES, Ciência política, ob. cit.

(7)AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

(8)SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015.

(9)SOUZA, Jessé. Ob. cit.

Crédito da foto da página inicial: Wilson Dias/ABr

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