Nos mais diversos âmbitos, as crises induzem à reflexão. Não apenas pelo desejo de compreensão do contexto vigente, dos determinantes e das possíveis saídas, mas também porque as crises são sempre reveladoras. Assim como a maré baixa traz à tona pedras desconhecidas ou momentaneamente negligenciadas, contextos de crise fazem emergir problemas que já existiam, ainda que ocultos. Nesse sentido, a crise mundial traz muitas revelações e o atual contexto brasileiro também.
Uma primeira percepção é a de que a economia brasileira – assim como todas as demais economias periféricas – não está imune aos efeitos das crises nos países centrais. A ideia do decoupling não resiste ao contexto atual, já que a recessão nos países do centro tem efeitos negativos até mesmo sobre os países periféricos com maior dinamismo econômico.
No tocante ao cenário político nacional, a crise também evidencia aspectos importantes: i) o conservadorismo da elite brasileira e da sua mídia não hesita em caminhar na direção do golpismo; mas ii) São Paulo não é o Brasil; iii) a oposição da esquerda não se mistura com aquela da direita; iv) a maior parte da população brasileira se lembra do que foram os anos 1990 – e os governos tucanos –, não querendo voltar àquele contexto.
No entanto, mais importantes são as reflexões que a crise evoca sobre as mudanças recentes nos campos econômico e social e as possibilidades de sua manutenção e aprofundamento.
Em realidade, a iminência da vitória de Aécio Neves nas eleições do ano passado já serviu de alerta. Entre aqueles que apoiavam o primeiro governo Dilma e entre a maioria daqueles que o criticavam “pela esquerda”, ficou claro que a eventual vitória tucana significaria um retrocesso.
Mais do que isso, de que poderia ser um retrocesso intenso e dramático. Ora, a possibilidade de promover um retrocesso por parte de um governo de direita é tanto maior, quanto menor a solidez dos avanços promovidos pelo governo anterior, não?
Se as elucubrações relativas ao possível governo Aécio já traziam luz sobre aspectos frágeis das conquistas recentes, esse início do segundo governo Dilma os ilumina com ainda mais intensidade. Para discuti-los, sugiro dois pontos que merecem destaque.
Em primeiro lugar, o marasmo atual revela como as conquistas recentes dependem umbilicalmente do crescimento econômico. É bem verdade que isso deriva da própria essência do capitalismo, um sistema que impele e exige crescimento. Entretanto, se o crescimento econômico é inerente ao capitalismo, as crises também são, cabendo ao Estado o papel de reduzir, para o conjunto da população, os efeitos nocivos de sua recorrente aparição.
Trazendo esse debate para o contexto brasileiro atual, o que quero dizer com isso? Que as conquistas recentes para parte importante da população brasileira ficaram muito ligadas à esfera da renda. Essas conquistas não devem de forma alguma ser menosprezadas, pelo ineditismo histórico e – principalmente – pelo efeito prático desse aumento de renda na vida das famílias mais pobres. Todavia, o risco é claro, já que as rendas podem ser facilmente reduzidas em um momento de crise.
Mas como poderia ter sido diferente? Embora haja uma clara correlação, o bem-estar da população não deve estar assentado meramente sobre ganhos de renda. Bem-estar e condições dignas de sobrevivência dependem sim da renda, mas também de bens e serviços públicos de qualidade.
A inclusão de milhares de famílias brasileiras no mercado de bens de consumo foi evidentemente uma conquista. Entretanto, essas mesmas famílias podem ser facilmente expulsas desse mercado ao terem sua renda diminuída, em particular no caso limite do desemprego, que já apresenta tendência inequívoca de crescimento – sem falar dos desocupados sem a cobertura do seguro-desemprego, que está se tornando mais restrita.
Ainda sobre os limites da inclusão assentada meramente sobre a renda, outro ponto merece destaque: o processo redistributivo preso à esfera dos fluxos proporcionou evidentes avanços, mas é importante entender que eles são parciais. A redução das desigualdades no Brasil só terá um caráter mais perene quando mexer também com a esfera dos patrimônios.
Do raciocínio acima, decorre um novo imbróglio. Seja no âmbito das rendas, seja naquele dos bens e serviços públicos, a construção de condições dignas para a população pode exigir a manutençãodos gastos fiscais, algo rejeitado pelo atual governo, que acatou as pressões pela austeridade.
Isso explicita um segundo problema que ficou escamoteado no período de bonança, mas ressurge de forma inquestionável no contexto de crise: a autonomia brasileira nas escolhas de política econômica continua sendo uma falácia (ao menos é esse o recado do próprio governo).
Da altivez das políticas anticíclicas de 2009/10, o governo recolhe-se a uma postura de completa obediência às reivindicações do mercado, promovendo um ajuste fiscal com consequências negativas imediatas sobre a população brasileira. A retórica pode variar, mas o objetivo claro desse ajuste é evitar a perda do grau de investimento conferido pelas agências de rating.
O medo continua sendo, mutatis mutandis, o mesmo que caracterizou a maior parte da história econômica brasileira, qual seja, a fuga dos capitais externos. Esse medo leva a uma subserviência aos mercados financeiros internacionais que revela com clareza estarrecedora a continuidade do nosso caráter de dependência.
Em suma, a crise atual revela, em primeiro lugar, que a melhoria recente no bem-estar de parte importante da população brasileira pode estar em xeque. Afinal, como tratei em artigo anterior, a pobreza e a miséria são recriadas pelo capitalismo com uma rapidez assombrosa.
E a crise revela, em segundo lugar,que a nossa dependência em relação aos mercados financeiros internacionais continua sendo extremamente elevada, com implicações diretas sobre a autonomia de política econômica. Afinal, a subordinação da periferia é permanentemente recolocada pela dinâmica do capitalismo global.
A crise atual revela, portanto, a necessidade de mudanças mais profundas, já que as contradições do capitalismo são igualmente profundas. Nos contextos em que a renda cresce para todos, a harmonia reina, mas de forma fugaz. Na crise, as contradições – que, como as pedras, nunca deixaram de existir, mas permaneceram ocultas sob águas momentaneamente abundantes – reaparecem com clareza.
Nesses momentos, não se pode mais ignorar essas contradições, sendo necessário encará-las e, de alguma maneira, enfrentá-las. O grande problema é que esse enfrentamento exige escolhas. E as escolhas estão sendo feitas.
Crédito da foto da página inicial: Vinícius Palermo/Projeto Águas Limpas
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