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Responsabilidade fiscal?

A agenda de austeridade e rigidez fiscal perdura, a despeito da pandemia. De um lado, busca-se interditar o debate sobre regras fiscais, associando aqueles que questionam o atual teto de gastos a interesses egoístas. De outro, está na mesa a possibilidade de criação de um teto nominal para a dívida pública.

A nova regra talvez seja uma novidade, mas a tentativa de interdição do debate é velha conhecida. Para muitos, “responsabilidade fiscal” consiste em fazer com que as receitas e despesas do governo fiquem alinhadas durante o tempo em que a terra dá uma volta em torno do sol*. Quem não defenderia a responsabilidade fiscal? Óbvio: irresponsáveis.

Sustentável é a dívida pública que não cresce a uma velocidade acelerada em relação ao produto interno bruto (PIB), os bens e serviços finais que a economia produz. Quem não defenderia a sustentabilidade da dívida? E por que não um teto que limite o valor nominal da mesma?

Implícita – ou explícita – está a noção de que existe um patamar ótimo de dívida/PIB e não poderíamos superá-lo, sob pena de amargar um caos econômico – baixo crescimento, juros explosivos, inflação fora de controle. Salvo por dados mal tabulados, a premissa não encontra respaldo empírico: a lista de países que cruzaram o Rubicão é cada vez mais longa, sem que, no entanto, tenham sofrido as consequências tão temidas.

À luz desse tipo de argumento, sustenta-se que o Estado brasileiro não tem dinheiro, que não pode dar amplo suporte às famílias e às empresas para que elas naveguem pela crise atual da forma menos sofrida possível. Afinal, temos que zelar pela responsabilidade fiscal, pela sustentabilidade da dívida pública.

Se aceitamos este estado das coisas, parece ser inevitável que, como resultado da pandemia, milhares de negócios tenham que fechar as portas, que milhões ingressem na pobreza e outros milhões sejam obrigados a aceitar empregos precários e a informalidade. Parece inevitável que a economia continue a rastejar anos a fio – salvo no delírio machadiano do Ministro da Economia – e que as desigualdades se tornem um abismo ainda mais fundo.

Nesses casos, parece não importar quantas voltas a terra dá ao redor do sol. Parece não importar quão insustentável é ter uma massa de pessoas fadadas a condições de vida deprimentes. Importa é ser “responsável” fiscalmente.

Na realidade, o que alguns economistas não contam é que isso não tem nada de inevitável. É uma escolha. Inclusive, uma escolha política, não “econômica”. Isto porque a economia já tem respostas para esses problemas há tempos.

Uma contribuição recente que mostra essas respostas é o livro da economista Stephanie Kelton, “The Deficit Myth”. Nele, a autora desmistifica e ressignifica vários lugares comuns sobre o orçamento público e o Estado. Mas talvez a contribuição mais importante de seu livro seja reposicionar o debate em relação ao que ela chama de “mito do déficit”.

Pensamos muito no déficit do orçamento público. Mas, convenientemente, os economistas esquecem de outros déficits mais relevantes. O déficit de boas oportunidades de emprego. O déficit de condições materiais para boa parte da população. O déficit sanitário, cujas entranhas foram expostas na pandemia. Os déficits educacional, de infraestrutura, climático. E, não poderia deixar de mencionar, o déficit democrático, associado diretamente à desigualdade – e, no nosso caso, levando à própria interdição do debate.

Irresponsabilidade não seria promover todos esses déficits? Insustentável não seria conviver com eles por anos a fio?

Parece que uma parte considerável dos economistas pensa que não: importante é continuar seguindo à risca o conjunto de regras autoimpostas que, em última instância, perpetuam déficits e mais déficits, sem sequer entregar a responsabilidade e sustentabilidade fiscal que almejam.

* A frase original, sempre relembrada pelo amigo Caio Vilella, é de Abba Lerner.

Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil

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