Em diversos artigos publicados no Brasil Debate, esta coluna tem defendido a tese de que se observou na primeira década dos anos 2000 a emergência de um novo padrão de organização e acumulação da indústria, denominado Doença Brasileira.
Esse padrão, forjado a partir da reação defensiva às transformações associadas à emergência do paradigma tecno-econômico da eletrônica no último quartel do século 20, à reorganização das cadeias globais de produção e ao movimento de liberalização comercial e financeira que assolou a economia brasileira desde os anos 1990, trouxe importantes impactos nas estratégias concorrenciais da indústria doméstica.
Entendidas como um instrumento para o enfrentamento de capitais em busca de valorização, estas estratégias concorrenciais mostraram-se bem-sucedidas até o período recente, a despeito das evidências que se avolumam em trabalhos de diversas orientações teóricas (e até políticas) a respeito da existência de um movimento local de especialização regressiva e de desindustrialização.
No entanto, o que se procura destacar neste artigo é que o tripé que viabilizou o sucesso dessas estratégias com maior ênfase até 2010 tem reduzido significativamente seu potencial de amparar a acumulação da indústria local. Explica-se.
Com relação à primeira dimensão do tripé, observa-se que a reorganização das unidades produtivas locais associada à integração importadora nas redes produtivas globais que viabilizou a substituição de partes, peças, componentes e até produtos finais por produtos importados a preços significativamente mais competitivos parece ter se esgotado em um cenário de abrupta e intensa depreciação cambial.
Como resultado desta depreciação, os efeitos de curto prazo sobre a outrora rentável estratégia de substituição da produção doméstica por produtos originários fundamentalmente da fábrica asiática parecem ser bastante negativos.
Ou seja, em um cenário em que a indústria potencializou sua rentabilidade concentrando-se em atividades crescentemente maquiladoras, ao contrário do que uma leitura produtivista poderia sugerir, os efeitos do realinhamento cambial sobre o tripé de acumulação industrial podem ser perniciosos – ao menos no curto prazo, dadas as estratégias concorrenciais forjadas e consolidadas pelo parque produtivo local há quase 15 anos.
Em paralelo a estes efeitos, a segunda dimensão do tripé que sustentou a acumulação da indústria no período recente – caracterizada pelo movimento de aumento do mercado interno, fomentado pela distribuição de renda, aumento da massa salarial, do emprego e do crédito – também reduziu substancialmente sua pujança. Em um cenário em que esse ciclo virtuoso foi abortado, parece ser difícil superestimar os impactos indiretos da recessão econômica, da deterioração do salário real e do aumento do desemprego no já fragilizado parque produtivo doméstico.
Por fim, a terceira dimensão do tripé, o acoplamento do parque produtivo doméstico ao mercado internacional como grande ofertante de produtos intensivos em recursos naturais, também parece ter se fragilizado gradativamente desde o fim do super ciclo de commodities. Neste cenário, a queda dos preços das principais commodities exportadas pela indústria local e a paralela diminuição do ritmo de crescimento da economia chinesa tem reduzido gradativamente o dinamismo dos setores intensivos em recursos naturais.
Aliado à deterioração das três dimensões que sustentaram a acumulação da indústria brasileira no período recente – e potencializando tal movimento – devem-se citar também os intensos e rápidos efeitos da depreciação cambial nos indicadores de endividamento das empresas industriais locais.
Da mesma maneira que a administração de passivos financeiros em dólar no período de prolongada apreciação do Real contribuiu para acumulação das empresas locais, a reversão desta apreciação a partir de 2011 e sua acentuação em 2014/15 têm levado a uma deterioração sistemática dos balanços das grandes empresas industriais no período atual.
Neste cenário de reversão intensa e abrupta no comportamento dos pilares do tripé que sustentaram a acumulação da indústria brasileira principalmente até 2010, acentuam-se as inquietações sobre quais seriam as bases de um eventual novo modelo de organização e acumulação da indústria local.
Estariam essas bases assentadas em uma reversibilidade do movimento de desindustrialização e reestruturação produtiva potencializada por um eventual driver exportador como sugerem algumas leituras? Ou, ainda a partir de uma perspectiva produtivista, estariam essas bases associadas à reindustrialização com vistas a reverter o movimento de integração importadora nas cadeias globais de produção para (re)atender a parcela da demanda doméstica que foi sistematicamente deslocada para o exterior?
Em meio a esta ‘estrada de Damasco’, admitindo-se a aderência política do capital industrial a um novo viés produtivista, resta-nos a inquietação de quão reversível seria o fenômeno de desadensamento produtivo em um cenário de acirramento da concorrência capitalista global e no qual as estratégias tecnológicas e produtivas da firma não podem ser caracterizadas como uma black box.
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