A métrica é perversa uma vez que reduz todos os valores de uma sociedade a apenas um número: o total de dinheiro gerado em seu território. Afetos, qualidade de vida e futuros melhores não entram na conta
Atualmente basta abrir qualquer site de notícias, de direita ou de esquerda, em mídia física ou digital, para entender que o PIB é a métrica mais utilizada como padrão definidor do “sucesso” de uma nação.
Como exemplo disso, e pegando como base só o dia 31 de janeiro de 2024, cito três reportagens de veículos de mídia diferentes que abordam a temática do PIB sob diferentes ângulos, mas sempre utilizando o PIB como referencial: temos a reportagem da Carta Capital pontuando os esforços do governo a fim de que o PIB cresça mais de 2% (aqui); a reportagem do Antagonista explicando que o governo irá “forçar” o aumento do PIB por meio dos programas PAC e Minha Casa, Minha Vida (aqui); e reportagem do Infomoney que indica a expectativa da queda de juros para terreno mais neutro, o que favoreceria o PIB crescer mais do que o esperado (aqui).
O que todas as reportagens têm em comum? A pibolatria (para pegar o termo emprestado do professor Conrado Hübner Mendes, com texto também ácido que pode ser lido aqui) é esse fetichismo de achar que o PIB indica qualquer coisa a mais que não apenas o Produto Interno Bruto de um país. Pior: é achar que aumentar o PIB é a maior prioridade de um país.
Seria engraçado se não fosse tosco. Para traduzir em termos leigos, é quase o mesmo que julgar o caráter de uma pessoa pelo tamanho de sua carteira, simplesmente não faz sentido!!
Enfim, seja qual for o matiz do espectro político, seja qual a nuance abordada, o fato é que o PIB tomou uma proporção muito grande na atualidade. Mas será que essa proporção condiz com a real relevância de tal métrica? Ou será que essa é mais uma métrica que nada de concreto afere em termos de positivo para um país?
Deveríamos nós, antes de aceitar esse número, nos perguntar se ele de fato mostra “progresso” (seja lá o que for o progresso propriamente dito). E, nesse ponto, nem o próprio criador do PIB confiava nesse potencial uso da medida. Senão vejamos.
O PIB é um conceito criado na década de 1930 pelo economista russo naturalizado americano Simon Kuznets. À época esse jovem economista, que ganharia no ano de 1971 um Prêmio Nobel, criou uma espécie de sistema para medir a renda de um país. A importância do instrumento era elevada na medida em que servia como parâmetro para que os administradores do governo pudessem entender melhor qual era a tendência de gastos e de geração de receitas de um país, permitindo que as políticas públicas fossem feitas de forma mais eficiente.
Em 1934, junto ao Senado americano, o economista Kuznets declina que:
“the welfare of a nation can scarcely be inferred from a measurement of national income” ou em português, por tradução livre, “ o nível de bem-estar de uma nação pode dificilmente ser inferido de uma medida do produto interno”.
Ou seja, há 90 anos, o próprio pai do PIB já alertava às autoridades que o método tinha suas limitações, mais especificamente no que tange a ser usado como uma medida de “sucesso” de uma nação. No entanto, nem o próprio Kuznets imaginava que a métrica criada por ele próprio tomaria a proporção que alcançou nos tempos atuais.
Como no livro de Mary Shelley, o Dr. Frankenstein deu vida a uma criatura que já não podia mais controlar. De forma irônica, assim como na história de terror (dos livros) a criatura ficou mais famosa que o seu criador, a despeito de que na literatura as pessoas confundem a criatura com o nome do próprio Dr. Frankenstein, e na vida real o economista é que é reconhecido pela sua criação.
Dito isso, temos outra verdade revelada: o aumento do PIB nem sempre indica concretamente um cenário de bonança para um país. É sabido que o crescimento do PIB está correlacionado com o aumento das taxas de criminalidade (que impulsionam gastos com segurança), com percursos mais longos para o trabalho (o que faz com que os cidadãos tenham que gastar mais com locomoção) e com o desmatamento (que tende a transformar a natureza em seu potencial estático em dinheiro), conforme pontuam Justin Zorn e Leigh Marz.
Será que algum dos pontos citados acima é positivo de verdade? Ou será que o fato de tais pontos serem vistos, em termos de aumento do PIB, como algo bom deveria acender em nossas mentes um alerta de que talvez “crescer o PIB” seja apenas um dado, que, isolado, diz pouco ou nada sobre o “progresso” de um país?
Diversos fenômenos ficam de fora do PIB. Cito alguns que em meu ponto de vista são igual ou tão mais importantes que o PIB: poder andar no parque com quem se ama; ter a tranquilidade de que você não será sumariamente demitido de um emprego por pouca coisa; conseguir escolher o que você quer comer; ter a paz de espírito de viver em um país com menos desigualdades, dentre outros.
Quem vê PIB não se preocupa com qualidade de vida da população, em como está estruturada a nossa sociedade, ou em como se constroem as relações atualmente. O afeto e o cuidado simplesmente não entram nessa conta perversa.
Uma inversão de valores é o que se tem com a ascensão do PIB como medida maior do sucesso. O rabo corre atrás do cachorro, e, no caso, nós somos o cachorro, sendo o PIB o nosso algoz.
Termino esse texto pontuando uma situação caricata e que demonstra a falta de afeto e de senso nesse frio número que indica o produto interno bruto de um país. Fazer uma declaração sincera de amor, olho no olho, por exemplo, não gera PIB. Em compensação, comprar flores e chocolates para apagar uma traição gera esse aumento no famigerado número, ao movimentar o comércio. Logo, pergunto: até quando a métrica mais importante de progresso de um país não levará em conta as coisas que realmente contam para o coração?
Paulo Schwartzman é mestrando no IEB-USP, formado em Direito também pela USP. Advogado, empreendedor, professor, escritor e mentor. Colunista em jornais jurídicos e revisor na Revista Brasileira de Meio Ambiente. Editor do Brasil Debate para temas jurídicos.
Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil
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