Dois eventos de relevância acontecerem em 2013 e 2014. O primeiro foram as manifestações de junho, ocasionada pela delicada situação da questão urbana. O segundo foi a eleição disputada que reelegeu Dilma.
Os dois episódios expressam que a sociedade e a economia brasileira estão concluindo uma fase transitória que conectará o período de capitalização dirigida pelo Estado (1930 – anos 1980) a um novo período de padrão de reprodução capitalista.
A transição em curso significa o fim da estabilidade relativa desde a redemocratização e a emergência de uma nova etapa histórica do capitalismo brasileiro.
A história da economia da América Latina no século 20 é história de sua industrialização.
O grande desafio era promover a internalização da produção sob o capital. Só que o capitalismo do século 20 é um sistema de controle Estatal, em que o crescimento precisa ser constantemente ajustado para atender demandas da base.
Caso contrário, a coesão social extremamente frágil, num ambiente que condensa passado e futuro num único instante, se desfaz e abre caminho para as transformações radicais que miram ultrapassar o capitalismo.
Além disso, a dependência estrutural de todo o continente latino-americano é um atalho a mais para a transição internacionalista devido à condição conservadora dos nacionalismos locais e da disparidade gritante que ela gera entre crescimento e desenvolvimento econômico.
Depois dos avanços iniciais da industrialização dirigida pelo Plano de Metas, o Brasil caiu na instabilidade política do começo dos anos 1960. Naquela época, houve uma polarização política intensa em torno de reformas que visavam a aprofundar as conquistas democráticas obtidas pela elevação da riqueza material absoluta até então.
Um dos principais pontos era a Reforma Agrária. Apesar dos limites gerais impostos pela estratégia reformista, o Brasil caminhava na direção correta de atendimento dos anseios imediatos do povo trabalhador.
O paralelo entre o início dos anos 1960 e o que se iniciou em 2013 vem daí: são dois instantes de esgotamento de progresso social por passos que demandam a partir de então uma mudança qualitativa.
No entanto, devido ao temor concreto no contexto da Guerra Fria de então, o processo de avanço social contido no aprofundamento do capitalismo no continente latino-americano foi substituído pelo avanço técnico excludente.
A partir de 1964, a exacerbação do modelo de associação subalterna ao mercado externo aprofundou as características capitalistas de reprodução econômica no Brasil, deixando para o futuro as questões caras à população trabalhadora do País.
A conclusão da industrialização “tradicional” com o II PND e a crise dos anos 1980 e 1990 marcaram uma etapa de transição para nossos dias.
O neoliberalismo e os ajustes em relação ao novo cenário internacional de escassez de investimentos produtivos só perdeu força a partir da decisão de encontrar uma saída “interna” com base na integração formal dos trabalhadores ao capitalismo de Estado com relativa preocupação social. Esta foi a mudança iniciada em meados dos anos 2000.
O período de estabilidade relativa entre 1994 e 2013 terminou quando a sociedade brasileira deu sinais do esgotamento absoluto da estratégia de desenvolvimento capitalista.
A formação de uma massa formalizada de milhões de trabalhadores com direitos criou a polarização que se observa hoje nos debates da superfície.
A classe trabalhadora (composta dos mais variados estratos de renda) forma um “bolão” extremamente heterogêneo sem condições de elaborar um projeto próprio de renovação para o País.
De um lado, o “popular” é um asco para a pequena burguesia e alto proletariado de consumo elitizado. Do outro lado, o suposto refinamento artístico e intelectual da “sociedade esclarecida” é ridicularizado em peso, inclusive por jornalistas da grande mídia.
A classe média massificada brasileira, o novíssimo fenômeno desde meados dos anos 2000, é um bicho de sete cabeças onde cada uma briga freneticamente com todas as outras.
O conservadorismo desse “bolão” é a esfinge de nossos dias, porque tudo isso ocorre sem que se recupere as grandes questões históricas que marcam os embates entre as classes.
Nos anos 1960, o socialismo real funcionava como possibilidade de alternativa ao que existe. Hoje, a ameaça exterior deste outro mundo possível assume uma forma super caricata a partir de pequenos dissidentes como Cuba, Coreia do Norte, Venezuela e Bolívia.
A face comunista da grande China é automaticamente eliminada e o PC chinês é contemplado como se seu projeto fosse o mesmo do mundo capitalista. A questão internacional é completamente distinta em nossa geração.
O subimperialismo brasileiro passou para o lado forte da cadeia imperialista mundial e não há hoje uma ameaça do comunismo que parta do estrangeiro.
Só que as propostas da mudança brotam, mesmo assim, de dentro do País, de seu interior e das bordas da periferia do sistema. Por isso emerge o discurso de divisória do povo brasileiro ao mesmo tempo em que se apela para os fantasmas passados do nacionalismo.
Só que não há mais como criar a unidade nacional contra o resto do mundo. É imperativo, portanto, que as análises de conjuntura econômica e política passem a ser centradas nas categorias de classe, porque a unidade nacional não pode mais ser criada pela fuga para mundos fantásticos de conciliação de interesses antagônicos.
A difusão dos conflitos de classe na abstração de “uma nação brasileira” não tem mais suporte estrutural.
Os inimigos do povo se tornam muito mais difusos, porque a economia brasileira se tornou capitalista em plenitude, com todas as suas contradições e heterogeneidades.
A posição militante em relação ao imperialismo externo terá que ser dividido com o próprio imperialismo interno, o que eleva ainda mais o grau do desafio e responsabilidade da classe trabalhadora brasileira na transformação do mundo.
É neste contexto que se deve avaliar a polarização atual em comparação àquela que antecedeu 1964, para que possamos compreender a envergadura do momento que vivemos.
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