O tema da desigualdade de renda entrou com toda força no debate econômico internacional com a publicação do livro “Capital in the twenty-first century”, do economista francês Thomas Piketty.
Da análise do autor aparecem, ao menos, duas constatações importantes. A primeira é o caráter concentrador de renda do capitalismo, representado pelo maior crescimento das taxas de retorno do capital em relação ao produto total.
A segunda diz respeito a algo pouco discutido, muito por dificuldade de acesso aos dados, que é a relação entre os estoques acumulados de riqueza no passado e os fluxos de renda apropriados. Em outras palavras, aqueles que já possuem riqueza acumulada encontram mais facilmente meios de mantê-la se valorizando, seja na produção ou na especulação, o que tende a aumentar a desigualdade de renda.
Esse tema também aparece com destaque no debate político brasileiro, dada nossa herança desigual e o movimento recente de redução da desigualdade de renda, indicada nas pesquisas domiciliares como a PNAD (Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios).
O coeficiente de Gini, um dos indicadores mais utilizados como medida da desigualdade diminuiu de 0,59 em 2002 para 0,501 em 2013, considerando os rendimentos de todas as fontes. Como um coeficiente mais próximo de zero indica melhor distribuição, entende-se que o cenário recente é menos desigual.
Podemos separar as razões diretas para a queda da desigualdade em dois grupos:
1) As políticas sociais, dentre as quais se destacam os programas de transferência de renda, mas com importância também para os gastos com políticas universais como saúde e educação;
2) O desempenho do mercado de trabalho, com redução da taxa de desemprego (de 10,5% em dezembro de 2002 para 4,3% ao final de 2013, segundo a Pesquisa Mensal de Emprego/IBGE), queda do nível de informalidade (58% da população ocupada em 2002 para 46% em 2012, segundo dados da PNAD) e valorização real do salário mínimo.
Além disso, a elevação dos salários mais baixos e as políticas de transferência de renda geram mais consumo, contribuindo para o crescimento econômico e consequentemente para mais oportunidades de emprego.
No entanto, voltando aos pontos lançados por Piketty, a riqueza previamente acumulada importa.
O Brasil é um país historicamente muito desigual, com um passado de colônia de exploração, escravidão, industrialização tardia e urbanização acelerada sem realização de reforma agrária. E isso resultou em que? Em um enorme contingente de excluídos. Isso mostra o tamanho do obstáculo que se deve superar e que o processo de redução da desigualdade de renda deve prosseguir e se intensificar.
Dentro das propostas discutidas no âmbito das eleições presidenciais, vemos de um lado uma ideia de continuidade do processo. Por outro lado, pelas questões colocadas como prioritárias pela oposição ao atual governo, percebe-se grande ênfase na redução da inflação e em um ajuste fiscal. Quais seriam, então, os efeitos disso sobre a desigualdade de renda?
O diagnóstico da inflação para os economistas da oposição receita a alta da taxa básica de juros como mecanismo de combate ao aumento de preços, via desaquecimento da demanda, além da contenção de gastos públicos.
Um aumento dos juros, historicamente elevados, favorece os ganhos financeiros daqueles que possuem riqueza prévia acumulada, contribuindo para um aumento da concentração de renda.
Com o aumento de juros e a consequente necessidade de se pagar mais sobre a dívida pública, o prometido ajuste fiscal deve se dar via corte de gastos da área social.
Isso não deve comprometer, pelo menos de início, os gastos com transferências de renda, dado que esses programas são muito baratos (menos de 1% do PIB). Contudo, gastos com políticas universais podem sim sofrer cortes em nome do ajuste.
A alta de juros e o corte de gastos públicos podem comprometer os avanços observados no mercado de trabalho, maiores responsáveis pela queda da desigualdade de renda.
Temos nos dias de hoje o exemplo claro dos países da Zona do Euro, que recorreram à austeridade fiscal e encontram sérias dificuldades para retomada do crescimento e altíssimas taxas de desemprego.
Seria de se esperar uma atitude do governo na direção contrária em um momento de baixo crescimento, com o Estado sendo o agente do gasto autônomo que contribui para dinamizar a demanda e torná-la atrativa ao investimento privado.
Considerando a herança desigual do País, os avanços redistributivos devem continuar. A redistribuição observada se dá principalmente entre os rendimentos do trabalho, o que as pesquisas domiciliares conseguem captar.
Piketty chegou a suas conclusões a partir de dados do Imposto de Renda dos países analisados para entender a evolução da apropriação da renda pelo 1% do topo da pirâmide.
A dificuldade de acesso aos dados do IR atrapalha tal abordagem para a economia brasileira. Os pesquisadores Marcelo Medeiros, Pedro Souza e Fábio Castro divulgaram este ano um estudo realizado a partir dos dados fiscais de 2006 a 2012 e chegaram à conclusão de que a parcela de renda apropriada pelos mais ricos continua subindo, reafirmando a tese de Piketty e reforçando a necessidade de maiores avanços na redistribuição.
Desse modo, para uma melhora significativa seria necessária uma reforma tributária que apontasse para uma estrutura mais progressiva, na qual os mais ricos pagariam proporcionalmente à sua riqueza, contribuindo para o financiamento de políticas sociais universais.
Essa proposta, contudo, esteve fora do debate dos principais candidatos, ficando restrita às candidaturas mais à esquerda e com pouco espaço para exposição de suas ideias. De qualquer forma, a estrutura desigual persiste e não pode haver retrocesso nas conquistas recentes.
Crédito da foto da página inicial: Marcello Casal/Agência Estado
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