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Que responsabilidade fiscal queremos? A falsa comparação com o orçamento doméstico


Comumente, compara-se o orçamento do Estado com um orçamento familiar para argumentar que o governo não pode gastar mais do que arrecada, pois isso provocaria endividamento público que teria consequências maléficas para a sociedade: aumento da taxa de juros, queda dos investimentos privados e aumento da inflação.

Dentro dessa lógica é que se criou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em 2000, fazendo com que o Estado passe a gerir o seu orçamento como uma “família responsável”, sempre mantendo uma “poupança” no final do ano. Essa “poupança” é o que se chama de superávit primário: receitas menos despesas, sem contar gastos com juros da dívida (a ideia é exatamente pagar os encargos da dívida pública). A partir da LRF o governo precisa, por lei, anunciar uma meta de superávit primário anual. Caso o governo não cumpra a meta que estipulou, poderá ser contestado pelo Congresso e, talvez, responder criminalmente por “irresponsabilidade fiscal”.

Mas com uma lógica tão simples, por que seria necessária qualquer reflexão? Para a surpresa de alguns, pode-se dizer que a lógica do orçamento do Estado não funciona como a lógica privada de uma família. As variáveis fiscais (arrecadação, gasto e dívida) apresentam uma dinâmica tão diferente daquela de uma dona de casa que tal comparação não só atrapalha o seu entendimento, como leva a condução de políticas econômicas danosas para a sociedade.

Em primeiro lugar, deve-se entender que a arrecadação do Estado depende diretamente da atividade econômica. Quando alguém compra qualquer produto, uma parte se converte em arrecadação do Estado por meio dos impostos. Assim, pode-se afirmar que esta é uma variável “pró-cíclica”, ou seja, quando o ciclo econômico está em sua fase ascendente, quando a renda está crescendo e as pessoas estão gastando mais, a arrecadação do Estado também crescerá.

Obviamente, quando o crescimento econômico desacelera, as receitas do governo também irão desacelerar. O gráfico 1 ilustra esse fato: percebe-se uma tendência das receitas do governo central e do PIB de variarem no mesmo sentido.

Por isso, quando o governo anuncia uma meta de superávit primário é preciso fazer uma boa estimativa de qual será o crescimento econômico para estimar a sua arrecadação e programar os seus gastos. Caso haja uma frustração de receitas devido a uma queda inesperada do PIB, será preciso cortar despesas ou negociar com o Congresso a mudança da meta fiscal.

Em segundo lugar, é preciso considerar a importância da demanda agregada para os ciclos econômicos. Percebe-se que em momentos de recessão há uma queda da renda e do consumo das famílias, impactando negativamente os investimentos. Afinal, por que um empresário aumentaria investimentos se não há perspectiva de aumentar as suas vendas ou de elevar os seus lucros? Com isso, a queda da demanda agregada (do consumo das famílias e do investimento) pode agravar um cenário de pessimismo, dificultando a retomada do crescimento. O gráfico da Figura 2 ilustra como a formação bruta de capital fixo (um correspondente para os investimentos) também segue uma lógica pró-cíclica.

Para quebrar esse ciclo vicioso seria preciso alguma fonte externa de estímulo, que pode ser pelo comércio internacional ou por algum agente que não precise responder a incentivos de demanda interna, como o Estado. Contudo, para que essas fontes externas impactem de forma positiva o crescimento econômico é preciso que: ou os parceiros comerciais do país aumentem a demanda por nossas exportações; ou que o governo tenha a capacidade de realizar gastos que impactem positivamente o PIB, com um “efeito multiplicador” sobre o crescimento.

Conforme Orair, Gobetti e Siqueira (2016)[1], os gastos do governo com investimento e com benefícios sociais apresentam um efeito multiplicador significativo, principalmente nas fases de baixa do ciclo econômico. Isso significa que, quando a economia desacelera, esses dispêndios geram maior crescimento econômico. Esse fato é explicado pelo impacto que esses gastos públicos têm sobre a demanda agregada, que geram um encadeamento de gastos no setor privado. Por exemplo, a população de baixa renda beneficiada com políticas como Bolsa Família desembolsa a maior parte de sua renda com consumo. Assim, praticamente todo o valor que o governo transferiu para essas famílias será revertido em vendas de algum empresário (para as famílias) e de própria arrecadação do governo (por impostos sobre essas vendas).

Contudo, quando o governo possui como principal objetivo o cumprimento da meta de superávit primário, seguindo a “lógica doméstica”, ele tende a cortar gastos em momentos de desaceleração econômica, agravando a queda da demanda agregada, do PIB e das próprias receitas do Estado. Além disso, boa parte dos investimentos públicos se encontram dentro de uma conta chamada “despesas discricionárias”, que são mais facilmente restringidas no esforço de se alcançar a meta fiscal. Conforme a Figura 3, ao perseguir uma forma “responsável” de gerir o orçamento público, o regime de superávit primário atribui uma característica pró-cíclica também aos gastos do governo.

Nesse sentido, é preciso ter cuidado com o caráter moralista atribuído à política fiscal quando se utiliza termos como “responsável”. Afinal, é exatamente por seguir essa “lógica doméstica” que a política fiscal pode dificultar a retomada do crescimento econômico e, consequentemente, prejudica as próprias contas públicas. Não é por acaso que desde 2015, quando o governo realizou um dos maiores ajustes fiscais de sua história, vivemos uma de nossas maiores crises. Com isso, a arrecadação do Estado despencou e passamos a conviver com déficits fiscais elevados, apesar dos grandes cortes de gastos.

Cabe lembrar que o déficit, em si, não é um problema se o governo está agindo para a retomada do crescimento econômico, mantendo a ordem social, promovendo emprego e investimentos estratégicos. Contudo, quando o governo passa a incorrer em déficits realizando políticas contracionistas, elevando o desemprego, piorando a vida da população e se afastando da retomada de um crescimento sustentável, os problemas são evidentes. Basta olhar para qualquer indicador social (desemprego, pobreza, educação, saúde…) para perceber que a “responsabilidade” não é o forte das políticas de austeridade.

Nota

[1] ORAIR, R. O.; GOBETTI, S. W.; SIQUEIRA, F. F. (2016). Política fiscal e ciclo econômico: uma análise baseada em multiplicadores do gasto público. Prêmio Tesouro Nacional de Monografias 2016, 2o lugar.

Crédito da foto da página inicial: TRE-SC

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