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Foto do escritorBruno Amá Stephan

Qual é o papel da tecnologia para Darcy Ribeiro?

Atualizado: 12 de ago.


O tema é central na obra de Darcy, para quem o desenvolvimento tecnológico é fundamental ao progresso civilizatório de uma sociedade. Mas se nos primeiros livros a tecnologia que importa é a dos colonizadores, em O povo brasileiro, principalmente, a potência recai sobre a matriz indígena

Na leitura de O povo brasileiro: formação e sentido do Brasil, de 1995, principal obra de Darcy Ribeiro, uma contradição evidente já desde o início é a relação do autor com o conceito de tecnologia. Um exemplo dessa ambiguidade ululante é a visão transmitida sobre o nível de desenvolvimento tecnológico dos povos originários. Em certa passagem, elogia enfaticamente o feito de engenharia alimentícia que foi o cultivo da mandioca no território brasileiro: “(…) constituiu uma façanha extraordinária, porque se tratava de uma planta venenosa a qual eles deviam, não apenas cultivar, mas também tratar adequadamente para extrair-lhe o ácido cianídrico, tornando-a comestível”.


Algumas páginas depois, ao descrever a “atualização histórica” que emergiu da colonização, inadvertidamente põe em xeque todas essas afirmações ao propor que o extermínio e o cativeiro das populações indígenas foram decorrentes de um “atraso civilizatório” que permitiu ao europeu subjugá-las. Não é nem de longe o único oxímoro irresoluto no livro, e muito menos no conjunto dos escritos de Darcy.


É curioso notar como a concepção de tecnologia e de revolução tecnológica são aqui tão prevalentes e ainda assim tão evasivas. Há na interpretação de Darcy um entendimento tácito de que existe um conhecimento propriamente científico e um outro, de caráter etno-científico, cultural, exótico. O primeiro triunfa sobre o segundo com violência, transfigurando-o, por vezes, em algo novo. O que são essas forças propulsoras e como exatamente funcionam para Darcy Ribeiro?


Antes de tudo, é preciso pontuar rapidamente uma cronologia da obra darcyana. Como destacado pelos organizadores da coletânea Os futuros de Darcy Ribeiro (2022), Andrés Kozel e Fabrício Pereira da Silva, Darcy era um pensador brasileiro de futuros e dedicou boa parte de sua produção para exercícios projetuais de horizontes mais justos e mais igualitários. Em um primeiro momento (entre 1968 até 1971, aproximadamente) o porvir desenhado é eminentemente socialista e, pode-se dizer, otimista. Tal ponto de vista é nítido em sua pentalogia dedicada à antropologia, especialmente em O processo civilizatório (1968).


Esse primeiro volume comenta amplamente a chamada “revolução termonuclear” e com ela as promessas de generalização de prosperidade e de fim das classes econômicas em escala global. Entretanto, após a turbulenta segunda metade do século XX e ao aproximar-se do final de sua vida, as futurologias de Darcy abrem mão (ainda que não absolutamente) de um aspecto profético e messiânico. O caminho para um mundo solidário não será mais tão certo e unívoco, como é possível perceber em O povo brasileiro, que completará então uma recém-formada hexalogia.


De qualquer maneira, é importante salientar que, com mudanças mais ou menos significativas, Darcy sempre alimentou uma perspectiva descrita por Kozel e Silva como tecnologista, ou seja, na qual o desenvolvimento tecnológico – mensurado sobretudo pelo poderio militar dominador de uma nação – é fundamental para precisar o progresso civilizatório de uma determinada sociedade. No caso citado no primeiro parágrafo deste texto, por exemplo, a agricultura indígena diversificada não é considerada parte do cálculo de seu desenvolvimento humano, ou, pelo menos, vale menos que as armas do europeu.


A antropologia contemporânea, por esse motivo, grosso modo, tende a ler o trabalho de Darcy Ribeiro (principalmente as suas primeiras incursões no campo) como uma teoria com traços teleológicos e eurocêntricos. O seu pensamento, mesmo com toda sua crítica a um atraso civilizatório, teria se tornado ironicamente obsoleto. Com efeito, não é uma colocação rigorosamente falsa, já que Darcy insiste até os seus últimos dias em enxergar o Brasil como um país atrasado que não deu certo.


Também abarca uma incomum faceta positiva da mestiçagem que, na visão do autor, foi estabelecida por processos espúrios, porém pode resultar no nascimento de um povo novo glorioso. São opiniões, no mínimo, heterodoxas e parecem, na superfície, uma espécie de evolucionismo, de historicismo.


Contudo, ainda na atmosfera do centenário de Darcy, celebrado ano passado, é difícil renegá-lo ao papel de um mero neoevolucionista deslumbrado. Na verdade, o que estava fazendo pode ser caracterizado como bricolagem em movimento, resultado de seus inúmeros fazimentos e suas várias peles, tornando-o uma figura passível de ser herdada de formas quase diametralmente distintas. Seu processo de formação intelectual era como uma grande engenhoca construída ao longo do tempo por peças que podem encaixar com resultados inesperados.


É inegável a pluralidade de áreas de estudo abarcadas por Darcy em seu trabalho e a vastidão de políticas públicas com as quais contribuiu no Brasil. Sempre foi um articulador sagaz de diversas técnicas, passando pela antropologia, economia, ciência política, pedagogia, arquitetura e literatura. Como evidência de sua sensibilidade, mesmo em O processo civilizatório aparece, para além da pretensiosa tentativa de explicar toda história da humanidade, a imponderabilidade de um amanhã que há de ser belo para a América Latina. Existe uma dignidade no subdesenvolvimento que depois se torna chave para compreender O povo brasileiro.


Nesse sentido, a questão da tecnologia volta ao centro do debate. É um tema constantemente reavaliado ao longo das análises darcyanas, mas sem conclusão definitiva. O que é anunciado na primeira pentalogia como um conjunto de novas ciências colocando uma população excluída no caminho certeiro do engrandecimento, em O povo brasileiro é uma vaga, genérica, mas latente potência de beleza. Essa potencialidade contraditória pode ser retomada de uma matriz indígena para se tornar um futuro possível.

Apesar de todo o descuidado na caracterização dessa utopia, nela tecnologia não está mais alhures – pelo contrário, sempre esteve nas mãos do(s) brasileiro(s).


*Para contribuir para a discussão da obra do grande “intérprete do Brasil” Darcy Ribeiro (1922-1997), antropólogo, historiador, sociólogo, escritor e político, cujo centenário celebrou-se em 2022, o Brasil Debate publica uma série de artigos exclusivos, batizada de “Darcyanas”.


Bruno Amá Stephan é formado em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP e estuda Ciências da Computação no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da mesma universidade.


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Crédito da foto da página inicial: Marcelo Camargo/Agência Brasil


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