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Pós-pandemia: Como retomar o crescimento mantendo a dívida pública sustentável?

No último sábado dia 18 de abril tive um interessante debate por videoconferência com os economistas Luiz Gonzaga Beluzzo, Pérsio Arida, José Marcio Rego, entre outros. O tema de nossa conversa foi sobre como será a economia brasileira quando as medidas de distanciamento social forem eliminadas e a pandemia de coronavírus for contida. Nosso cenário padrão é que o Brasil irá sair dessa crise com uma enorme capacidade ociosa, desemprego elevado e uma dívida pública como proporção do PIB em torno de 90%. Nesse contexto, a grande questão que se coloca é saber como retomar o crescimento da economia brasileira, ao mesmo tempo em que se adotam medidas para reduzir a relação dívida pública/PIB para os patamares anteriores ao da crise do coronavírus, ou seja, algo como 78% do PIB.

É consenso entre nós que o aumento da dívida pública para 90% do PIB no início de 2021 não deve trazer maiores problemas para a economia brasileira, haja vista que (i) todos os países do mundo deverão observar um aumento significativo da dívida pública como proporção do PIB, pois a pandemia do coronavírus é um choque global que vai exigir um aumento significativo das transferências governamentais para o setor privado a fim de mitigar o impacto das medidas de distanciamento social sobre o nível de emprego e de renda da população; e (ii) a dívida pública brasileira é denominada na moeda local o que faz com que, dentro de limites razoavelmente amplos, ainda que não irrestritos, um aumento da dívida pública não se traduza em dificuldades maiores de rolagem da mesma nos mercados financeiros.

A existência de capacidade produtiva ociosa e elevado desemprego permitem, em tese, uma recuperação bastante rápida do nível de atividade econômica; desde que seja criada demanda efetiva em magnitude suficiente para empregar as máquinas e os trabalhadores existentes. Na verdade, mesmo antes da crise do coronavírus, a economia brasileira já operava com um volume considerável de ociosidade do seu equipamento de capital e da sua força de trabalho; herança da crise de 2014-2016 e do baixíssimo ritmo de crescimento econômico (1,2% na média do período 2017-2019 contra uma tendência de 2,8% a.a no período 1980-2014) que se seguiu à mesma. Ao longo do ano de 2020, a atividade econômica deve se contrair, segundo estimativas preliminares do FMI, em torno de 5,5%; o que deverá aumentar o desemprego para um patamar próximo de 20% da força de trabalho e reduzir o nível de utilização da capacidade instalada (NUCI) na indústria para um patamar inferior a 70% (comparado com 82% na média histórica).

A questão fundamental nesse contexto é saber de onde virá a demanda efetiva necessária para a recuperação do nível de atividade econômica. Alguns analistas consideram que, uma vez passados os efeitos da pandemia e eliminadas as medidas de distanciamento social, a demanda do setor privado (consumo das famílias e investimento das empresas) poderia aumentar rapidamente, permitindo um padrão de recuperação da economia em forma de V. Infelizmente não é esse o cenário que estamos antecipando.

Com efeito, a contração acentuada do nível de atividade econômica ao longo de 2020 deverá levar à falência inúmeras empresas do setor privado. As empresas que sobreviverem a essa crise deverão sair da mesma com um nível de endividamento muito elevado e com uma elevada ociosidade na sua capacidade produtiva. Em tais condições, uma reação rápida do investimento do setor privado é pouco provável, para dizer o mínimo. Também é pouco provável que ocorra um aumento significativo do investimento direto produtivo para o financiamento dos projetos de infraestrutura que o governo federal, por intermédio do Ministério da Infraestrutura, planeja lançar em 2021 para puxar uma forte recuperação da economia, editando assim uma espécie de Plano Marshall para a economia brasileira.

A preferência pela liquidez deverá permanecer elevada entre os investidores estrangeiros por um bom tempo após o final da pandemia de coronavírus, o que, por si só, deverá restringir seu apetite por ativos de risco em países emergentes; além disso, os países desenvolvidos, notadamente na União Europeia, deverão lançar grandes programas de investimento público com foco na descarbonização da economia, os quais deverão ser, em parte, financiados pelo setor privado, desviando ainda mais a atenção dos investidores estrangeiros com respeito aos países emergentes. Por fim, o elevado desemprego torna igualmente pouco provável um aumento significativo da demanda de consumo por parte das famílias.

Daqui se segue que as únicas fontes possíveis de crescimento da demanda efetiva no pós-pandemia são as exportações e os gastos do governo. Embora um regime de crescimento puxado pelas exportações seja o desejável para uma economia aberta que não disponha de moeda de reserva internacional; tal possibilidade não estará disponível para a economia brasileira por um longo período. Com efeito, nosso cenário básico prevê um retrocesso no processo de globalização, com os países desenvolvidos impondo um volume crescente de barreiras não-tarifárias – e, em alguns casos, até mesmo de barreiras tarifárias – sobre as importações, o que deverá reduzir significativamente o ritmo de crescimento do comércio mundial.

Isso posto, a única alternativa disponível é aumentar os gastos do governo, principalmente, embora não exclusivamente, com investimento em obras de infraestrutura. Aqui nos deparamos com dois obstáculos. Em primeiro lugar, a Emenda Constitucional do Teto de Gastos impede que o gasto do governo possa aumentar em termos reais. Observem que o problema aqui não se limita a “abrir espaço no orçamento” para aumentar o investimento público; isso poderia ser conseguido por intermédio de uma redução dos gastos obrigatórios na linha do que foi proposto pela PEC 186, também conhecida como PEC emergencial.

É necessário aumentar o gasto primário como um todo – preferencialmente via investimento em infraestrutura – para estimular o uso da capacidade produtiva ociosa. A simples substituição de gasto obrigatório por gasto discricionário, como é defendido por boa parte dos analistas econômicos, não resolve o problema; pois tem efeito praticamente nulo sobre o nível global de demanda efetiva.

O segundo obstáculo é o elevado endividamento do setor público. O raciocínio de senso comum diria que para reduzir o nível de endividamento do governo é necessário reduzir os gastos públicos; mas a recuperação do nível de atividade econômica requer exatamente o contrário. Nos deparamos então com um dilema: as medidas necessárias para permitir a recuperação do nível de atividade podem levar a uma trajetória insustentável de crescimento da dívida pública, o que, no limite, poderia abortar o próprio processo de recuperação econômica.

A questão da sustentabilidade do endividamento público foi analisada pioneiramente por Domar (1944). Nesse artigo, Domar demonstra que a dinâmica da dívida pública como proporção do PIB depende de duas variáveis, a saber: (a) a diferença entre a taxa real de juros e a taxa real de crescimento do PIB; (ii) do resultado primário do setor público. Se a taxa real de crescimento do produto for maior do que a taxa real de juros; então a dívida pública como proporção do PIB poderá ser reduzida, mesmo que o governo opere com algum déficit primário.

Daqui se segue, portanto, que a chave para compatibilizar uma política fiscal expansionista com a estabilização/redução da dívida pública como proporção do PIB é manter a taxa real de juros num patamar suficientemente menor do que a taxa de crescimento do produto, para permitir que, mesmo num cenário em que o governo opere com um déficit primário, seja capaz de operar uma redução do endividamento do setor público.

No momento em que escrevo este artigo, a Selic real ex-ante se encontra em torno de 1,25% a.a (a expectativa de inflação para 2020 está atualmente em 2,5%). Na ausência de controles a saída de capitais, acredito ser muito difícil reduzir a Selic real abaixo de 1% a.a; do contrário, pode ocorrer um movimento de fuga de capitais do país, resultando numa desvalorização ainda maior da taxa de câmbio, a qual poderia ter impacto inflacionário relevante.

Por outro lado, contudo, a enorme ociosidade da utilização da capacidade produtiva combinada com um desemprego muito elevado deve manter a inflação abaixo do centro da meta por vários anos. Dessa forma, tal como ocorreu na Europa e nos Estados Unidos após a crise financeira de 2008, acho pouco provável, para não dizer impossível, que a política monetária no Brasil saia do campo expansionista no horizonte previsível. Sendo assim, podemos assumir que a taxa real de juros deverá permanecer por 1% a.a por vários anos.

Um ponto que não foi considerado por Domar em sua análise era a possibilidade de uma parte do déficit nominal ser financiado com a emissão de moeda; mais especificamente, que uma parte dos títulos vendidos pelo governo para financiar seu déficit seja adquirido pela autoridade monetária. Atualmente essa prática não é permitida no Brasil, mas vários analistas, entre os quais os ex-ministros da fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira e Henrique Meirelles vieram a público defender essa medida. Para tanto, seria necessária uma Emenda Constitucional que permitisse explicitamente ao Banco Central adquirir títulos públicos no mercado primário.

Para viabilizar a regulação de liquidez no mercado interbancário, com a manutenção de uma Selic nominal compatível com uma meta de 1% a.a. em termos reais, e a monetização de parte do déficit público também será necessário substituir as operações compromissadas por depósitos voluntários no Banco Central. Dessa forma, a liquidez excessiva criada pelo financiamento monetário do déficit público poderá ser retirada pelo Banco Central por intermédio dos depósitos voluntários sem que haja a criação de dívida adicional por parte do Tesouro Nacional.

Numa economia que opera com capacidade ociosa e que não se defronta com restrição de balanço de pagamentos, a taxa de crescimento do produto é determinada pela taxa de crescimento da demanda autônoma que não cria capacidade produtiva. Esse é o resultado básico do assim chamado modelo do super-multiplicador (Oreiro e Santos, 2019). Em termos simples, o modelo do super-multiplicador estabelece que a taxa de crescimento do produto será igual a média ponderada entre a taxa de crescimento dos gastos do governo e a taxa de crescimento das exportações. Dessa forma, uma elevação suficientemente grande da taxa de crescimento dos gastos do governo poderá aumentar a taxa de crescimento do produto de forma a fazer com que a diferença entre a taxa real de juros e a taxa de crescimento do produto assuma o valor requerido para a estabilização/redução da dívida pública como proporção do PIB. A questão é, portanto, saber em que condições esse resultado pode ser obtido.

Antes de prosseguir com o exercício é importante fazer um alerta. O modelo do super-multiplicador não permite que o crescimento seja liderado indefinidamente pelos gastos do governo. Com efeito, quando a taxa de crescimento dos gastos do governo é maior do que a taxa de crescimento das exportações; ocorre uma deterioração crescente do saldo da balança comercial a qual resultará numa crise do balanço de pagamentos no longo-prazo.

Nas condições prevalecentes na economia brasileira é possível, como veremos na sequência, puxar o crescimento por intermédio do crescimento dos gastos do governo por um período muito longo; mas, em algum momento, o motor do crescimento terá que ser substituído pelas exportações para garantir a solvência intertemporal do balanço de pagamentos. Nesse contexto, o volume expressivo de reservas internacionais possuídas pelo Brasil dá a margem de segurança necessária para executar esse tipo de política.

O aumento da taxa de crescimento dos gastos do governo exige uma flexibilização do teto de gastos. Concretamente, eu sugiro que a EC 95 seja alterada para permitir um crescimento de até 4% a.a do gasto primário global da União, mas de apenas 0,8% a.a do gasto real com a folha de pagamentos dos servidores públicos da União. Dessa forma, o teto flexibilizado permitirá um aumento significativo do investimento público, ao mesmo tempo em que permitirá uma redução gradual da despesa com a folha de pagamentos da União, tanto em proporção do PIB como em termos de participação na despesa primária. Medidas como a redução dos vencimentos dos servidores públicos são desnecessárias e, dado o quadro geral de insuficiência de demanda efetiva, contraproducentes.

Na sequência iremos apresentar os resultados de simulação de uma versão do modelo do super-multiplicador. Para a simulação iremos utilizar valores para os parâmetros e condições iniciais do modelo que sejam representativos para a economia brasileira.

Os parâmetros principais são: propensão a poupar (s = 0,2), propensão a importar (m = 0.15), relação capital-produto (v = 2,8), taxa de depreciação do estoque de capital (d = 0,03), elasticidade da receita tributária com respeito ao PIB (), sensibilidade do investimento a capacidade ociosa não planejada (), grau normal de utilização da capacidade produtiva (, taxa de crescimento da força de trabalho (n=0,008), elasticidade renda das exportações (, coeficiente de Kaldor-Verdoorn (e taxa de crescimento do comércio mundial (). As variáveis de política econômica são as seguintes: taxa real de juros (r = 0,01), taxa de crescimento dos gastos do governo () e a fração do déficit nominal do setor público que é financiado com emissão monetária (k=0,2). Por fim, as condições iniciais da economia em são a taxa de investimento (, o grau de utilização da capacidade produtiva (), a dívida pública como proporção do PIB (, o déficit primário como proporção do PIB (, os gastos do governo como proporção do PIB (), a taxa de emprego e a participação dos gastos do governo na demanda autônoma (.

O leitor deve observar que o modelo foi originalmente pensado para tempo contínuo, mas a simulação foi realizada em tempo discreto, usando-se o EXCEL. O período de simulação começa em 2021 e termina em 2032.

A tabela I abaixo apresenta os resultados da simulação:

Nas condições da simulação, uma taxa de crescimento dos gastos do governo de 4% a.a é compatível com uma trajetória de aumento relativamente rápido do grau de utilização da capacidade produtiva e mais moderado do percentual da força de trabalho que está empregada. O déficit primário como proporção do PIB cai de forma gradual ao longo do tempo, tornando-se negativo a partir de 2028, ou seja, transformando-se num superávit primário. Em 2032, a economia brasileira deverá operar com um superávit primário de 2,3% do PIB. A dívida pública como proporção do PIB começa a declinar a partir de 2025, sendo reduzida para 77,16% do PIB em 2032. A taxa de investimento do setor privado cai até 2024, resultado da existência de capacidade ociosa não planejada, a qual só será eliminada em 2025. Por fim, a taxa de crescimento do produto se estabiliza em torno de 3,6% ao ano no final do período de simulação.

Qual seria o impacto em termos do endividamento público se a taxa de crescimento dos gastos do governo fosse menor? Será que o resultado seria superior em termos da redução da dívida pública como proporção do PIB. A tabela II abaixo mostra os resultados da simulação do modelo considerando uma taxa de crescimento dos gastos do governo de 3,5% a.a.

Como podemos observar claramente nessa tabela, a economia chegaria em 2032 com um endividamento mais alto (81,14% do PIB) e um superávit primário mais baixo (1,96% do PIB). Esse resultado aparentemente contraintuitivo decorre do fato de que, ao acelerarmos a taxa de crescimento dos gastos do governo, no contexto em que prevalece enorme ociosidade na utilização dos fatores de produção, o resultado será uma redução mais rápida do endividamento público e um crescimento mais acelerado da receita tributária, o que irá permitir uma consolidação fiscal mais rápida. Deve-se observar também que, nesse caso, tanto o grau de utilização da capacidade produtiva como a taxa de emprego serão menores no final do período de simulação, do que no caso anterior.

Este pequeno exercício numérico mostra que é possível conciliar a adoção de uma política fiscal expansionista com a redução da dívida pública como proporção do PIB no médio prazo. Nas condições da simulação, a economia brasileira não deve apresentar restrições de oferta antes de 2032, de forma que a expansão fiscal não deverá gerar pressões inflacionárias relevantes durante esse período. O risco dessa estratégia é o efeito que a mesma terá sobre o desequilíbrio externo. Nas condições de simulação a economia brasileira irá crescer a um ritmo médio de 3,5% a.a enquanto a economia mundial irá crescer a um ritmo de 2%. Isso deverá levar a uma gradual redução do saldo da balança comercial, se não houver nenhuma mudança estrutural que permita (a) uma elevação da elasticidade renda das exportações e/ou (b) uma redução da elasticidade renda das importações.

A aceleração do crescimento conjugada com o aumento do investimento público e a manutenção da taxa real de câmbio nos patamares atuais deverá, contudo, permitir um movimento de reindustrialização da economia brasileira, o qual irá alterar as elasticidades renda das exportações e das importações. Nesse contexto, sou otimista quanto à capacidade do Brasil de realizar de forma gradual seu ajuste externo, sem incorrer numa crise de balanço de pagamentos. O volume expressivo de reservas internacionais possuídas pelo Brasil (em torno de US$ 350 bilhões) devem proporcionar o colchão de liquidez externa necessário para enfrentar o aumento inicial do desequilíbrio externo; até que a mudança estrutural promovida pela reindustrialização se encarregue de eliminar esse desequilíbrio.

Em suma, a crise resultante da pandemia do coronavirus pode ser uma oportunidade única para o Brasil se livrar, ao mesmo tempo, da ortodoxia econômica, que impõe travas institucionais ao aumento do investimento público, e da desindustrialização precoce. Nesse sentido, pode ser um período similar aos anos 1930, quando o país, liderado Getúlio Dorneles Vargas iniciava seu processo de industrialização por substituição de importações. Resta, no entanto, encontrar outro Getúlio Vargas.

Crédito da foto da página inicial: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Referências

Domar, E. (1944). “The ´Burden of the Debt and National Income”. The American Economic Review, Vol. 34, N. 4, pp. 798-827.

Oreiro, J.L; Costa Santos, J. (2019). “The Impossible Quartet in a Demand-Led Growth Supermultiplier model for a Small Open Economy”. Anais do 4º International Workshop on New Developmentalism, São Paulo: Fundação Getúlio Vargas.

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