Há anos o Congresso Nacional conta com uma bancada que desafia o princípio de laicidade do Estado brasileiro: a Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Mal disfarçados de defensores da ética, da liberdade e da justiça, os deputados da FPE têm se dedicado a propor e aprovar projetos visivelmente contrários à conquista e afirmação de direitos de mulheres e da população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais).
Entre elas, a proposta da “cura gay”, que incentiva psicólogos a tratar a homossexualidade como uma patologia; a aprovação em comissões do projeto do Estatuto da Família (PL 6583/13), que considera como família apenas a união entre homem e mulher e desconsidera a união de pessoas do mesmo sexo; a tentativa de emplacar um estatuto do nascituro, que restringiria a possibilidade de aborto legal mesmo em caso de estupro da mulher e, mais recentemente, a aprovação na Comissão de Constituição e Justiça da proibição do fornecimento pelo SUS da pílula do dia seguinte para mulheres que foram estupradas (PL 5069/13).
Se até meados de 2014 o principal nome da FPE foi o deputado Marco Feliciano (PSC), presenciamos em 2015 o avanço de um parlamentar mais perigoso, por ser mais habilidoso politicamente, na liderança do grupo religioso: ninguém menos que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB).
Além de ser autor do projeto que proíbe a pílula do dia seguinte, Cunha, em poucos meses de presidência, priorizou pautas conservadoras e de claro interesse religioso, como a votação do Estatuto da Família, a proposta de Emenda Constitucional que dá às associações religiosas o poder de questionar a constitucionalidade de leis perante o STF (PEC 99/11), e o projeto de lei que isenta do Imposto de Renda doações em dinheiro às igrejas, também de sua autoria (PL 3543/08).
O ataque de Cunha e da FPE contra mulheres e grupos não-brancos e não-héteros faz parte de um plano estratégico de poder do fundamentalismo religioso, que vai desde a eleição de vereadores e prefeitos ligados às igrejas evangélicas à ocupação dos cargos mais altos do governo, quiçá a Presidência da República.
Não podemos esquecer que, antes dos escândalos sobre contas ilegais na Suíça, Cunha despontava como uma possível alternativa à Presidência em 2018.
Para se manter no poder, ele buscou se alinhar a grupos conservadores, como as chamadas bancadas ruralista e da bala, agilizando a votação de projetos como a revogação do Estatuto do Desarmamento (PL 3722/2012) e a transferência da competência de demarcar terras indígenas e quilombolas do Executivo para o Legislativo (PEC 215/2000), em detrimento de grupos historicamente oprimidos, como indígenas, quilombolas, mulheres, homossexuais e transexuais.
Mas, por que a investida de Cunha e dos fundamentalistas contra os direitos das mulheres e outros grupos oprimidos ressoam em segmentos tão diferenciados como estes, aparentemente alheios às questões de liberdade sexual e igualdade de gênero?
Grupos marginalizados são mais suscetíveis a ataques contra a democracia justamente pelo fato de serem marginalizados, minorizados e não reconhecidos. Afinal, qual o custo político e social que um homem branco e ruralista tem em se unir com fundamentalistas religiosos contra mulheres e homossexuais em troca do massacre de índios e quilombolas?
Infelizmente, o custo é baixo, pois as maiorias que desfrutam dos privilégios do status quo veem a investida de grupos minorizados por direitos uma afronta à ordem das coisas já postas em seu lugar.
No caso específico das mulheres, não é novidade que projetos políticos conservadores se forjaram a partir do forte controle sobre seus corpos. Desde “Eva”, em diferentes contextos e espaços, as mulheres estão no centro das disputas em torno dos conceitos de honra, moralidade e liberdade.
Apesar dos importantes avanços no âmbito da sexualidade, fruto das lutas políticas feministas, esses setores da sociedade pressionam para reduzir as múltiplas formas de viver a sexualidade. Nesse sentido, não é por acaso que são os corpos das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos que estão no centro das disputas da democracia.
É bom lembrar que atualmente tramitam nada menos que 22 processos judiciais contra Cunha, o que o transforma em uma figura um tanto contraditória no momento em que se autoproclama guardião da moral na Câmara dos Deputados.
Dessa forma, é impossível não desconfiar de que os projetos de lei levados à frente por ele fazem também parte de uma estratégia para tirar o foco das acusações que acompanham toda a sua história política e que vêm à tona principalmente nos últimos meses.
Por fim, é importante notar que os movimentos feitos contra os direitos sexuais e reprodutivos pela FPE e por Eduardo Cunha não existem em um vácuo. O Brasil e o mundo vivenciam o crescimento das forças feministas, em todas as partes, de todas as formas, de todas as gerações, com demandas interseccionais.
Assim como em outros tempos, isso gera backlash, o movimento político contrário, a crescente oposição à autonomia feminina. Se há alguns anos Cunha e seus aliados teriam sido vistos como retrógrados e sem perspectiva de mundo, agora existem apoiadores em todos cantos, fundamentalistas ou não, demandando que mulheres “voltem para a cozinha” ou que “não reclamem do filho já que não reclamaram na hora de fazer”.
Como forma de resistir a esse backlash, as mulheres organizadas brasileiras, de forma criativa e irreverente, ocupam as ruas, as redes e os espaços democráticos em busca de autonomia para decidir sobre os rumos da sua vida e sobre como viver a sua sexualidade.
Na Marcha das Margaridas e agora na “Primavera feminista”, as mulheres denunciam o conservadorismo e as contradições da figura de Eduardo Cunha. Contra o projeto de lei 5069/2013 e todas as iniciativas parlamentares que buscam retroceder os direitos conquistados, as mulheres não aceitam que pais, papas, pastores, juízes ou deputados tenham poder sobre o direito legítimo e democrático de viverem livres.
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