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Presos provisórios no Brasil: em excesso e com direitos desrespeitados

Dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – Infopen, do Ministério da Justiça, de junho de 2013, revelam que mais de 40% dos presos no Brasil são presos provisórios, isto é, que ainda não foram processados, julgados e condenados à pena privativa de liberdade ou, em linguagem comum, de prisão.

A prisão provisória existe como uma medida urgente, decretada pelo Poder Judiciário, para retirar alguém do convívio social, e ocorre em diferentes hipóteses – desde casos de flagrante prática de delito punível com prisão; aos casos em que a prisão seja necessária para a condução do inquérito policial ou aplicação da lei penal, em que a liberdade do indiciado represente risco concreto à própria aplicação da lei, para citarmos alguns exemplos.

Muitas espécies desse instituto são, evidentemente, um “guarda-chuva” da Lei – lembremos que a lei processual Penal brasileira é um Decreto-Lei, isto é, um ato do Poder Executivo de 1941, que conferiu a si mesmo o poder de legislar, em detrimento do Congresso, no auge do Estado-Novo – para, àquela época, legitimar a ação policial do Estado em perseguir e efetuar prisões arbitrárias contra inimigos políticos.

Passados os anos da ditadura varguista, o tal Decreto-Lei foi recebido pela Constituição de 1988 e seguiu sendo aplicado na jovem (ou não tão jovem assim) democracia brasileira. Constituição que preza a liberdade como regra central da democracia: ninguém será preso sem o devido processo legal, nem levado à prisão quando a lei admitir a liberdade provisória.

A liberdade é a regra de qualquer regime democrático. A prisão é a exceção. E como exceção da exceção, está a prisão provisória. Ela não é fundada em um processo, em uma “verdade processual” revelada em decisão de um juiz ou uma juíza, após ouvir a acusação e a defesa, e analisar todas as provas da prática de um crime por alguém.

O problema é que a exceção tende a se tornar regra no sistema prisional brasileiro. O mapa das prisões, elaborado pela organização Conectas, aponta que entre 1992 e 2013, o Brasil cresceu mais de 300% sua taxa de encarceramento (número de presos por 100 mil habitantes). Significa que, num intervalo de quase 20 anos, mais pessoas foram presas, e boa parte delas, sem uma sentença que as condenasse à prisão, uma vez que muitos processos judiciais se arrastam por anos na justiça.

A prisão provisória coincide, não raro, com a prática de abuso de autoridade, violência policial e mesmo com a prática de torturas e outras violações de direitos humanos. Ela é, mais uma vez, “guarda-chuva”: da ação policial e também de uma reação judicial no atual regime democrático e legal. Revela a faceta monstruosa dos flagrantes forjados, das prisões arbitrárias, do tolhimento do direito de ir e vir, sob a justificativa de “preservação” da ordem pública, amparados pelo manto de aparente legalidade.

Um caso recente, noticiado pelas mídias, em que desproporcionalidade da ação policial coincide com a prisão provisória é a da travesti Verônica Bolina, presa em um distrito policial por suspeita de agressão a uma vizinha. Verônica aparece com o rosto desfigurado, com hematomas e contusões, amarrada e jogada ao chão, nua, em imagens que dificilmente explicam que seriam tais medidas tomadas por agentes policiais do Estado para “conter” uma reação violenta da presa.

O caso de Verônica não é o único, nem o primeiro. Mas nos remete aos compromissos que o Brasil assumiu, no plano internacional, sobre direitos humanos, liberdades individuais e civis, e tratamento de pessoas privadas de liberdade.

Para se ter uma ideia, muitos juízes e juízas atualmente decretam prisão provisória de suspeitos presos em flagrante, sem sequer terem tido contato com essas pessoas, ou ouvir sua manifestação de inocência ou culpa. A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) prevê que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”. Por isso a importância de realizar as chamadas audiências de custódia, em prazo imediato após prisão em flagrante, para que o juiz decida sobre a prisão provisória de alguém.

Outro compromisso assumido pelo Brasil, de extrema importância no plano internacional, são as chamadas Regras Mínimas para Tratamento de Prisioneiros, Resolução da Assembleia-Geral da ONU, de 1955.

Atualmente em processo de revisão, tais regras foram objeto de discussões de especialistas da sociedade civil e dos governos dos países signatários nos últimos anos. Em seu texto, afirma que prisioneiros não julgados devem ser tratados como inocentes, e mantidos separados das pessoas presas já condenadas.

E, na condição de prisioneiros, são destinatários dos mesmos padrões de direitos que os presos condenados: assistência jurídica, condições de prisão adequadas, com iluminação, água, alimento, direito ao trabalho (uma inovação na atual proposta em discussão), saúde e educação.

Infelizmente esquecidas pela morosidade dos feitos judiciais, algumas dessas pessoas presas provisoriamente permanecem esquecidas por anos na prisão, aguardando julgamento e abarrotando celas. Em algumas vezes, chega-se ao absurdo de estarem presas há mais tempo que uma possível sentença que as condenasse pelo crime do qual foram suspeitas de terem cometido.

Um dos pontos nevrálgicos da discussão atual sobre os problemas do sistema prisional brasileiro são os presos e presas provisórios. Resolver essa inversão – de uma prisão excepcional convertida em regra – que contribui com situações abomináveis, depende de inúmeros esforços. Depende de uma forte mobilização social, com a apresentação de queixas e denúncias nos sistemas de proteção internacional de direitos humanos.

Depende de uma reformulação da política judiciária: da formação dos juízes sobre as funções da pena em nossa sociedade à gestão de recursos humanos e materiais do judiciário para acelerar o prazo de tramitação dos processos. Depende da mobilização de defensores públicos. Depende de uma política de formação de agentes de correição e de policiais, que saibam agir com proporcionalidade e sejam efetivamente responsabilizados por abusos.

Depende de uma gestão penitenciária que observe compromissos internacionais para o tratamento dos custodiados. Depende de uma política legislativa de reforma do Código processual penal, que desbaste os excessos e entulhos autoritários incompatíveis com uma democracia.

Estes são chamados urgentes para nossa democracia.

Crédito da foto da página inicial: Antonio Cruz/Agência Brasil

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