O artigo faz parte do fórum #Governo sem voto, iniciativa em parceria com a Plataforma Política Social
Na escrita de Nordeste (1937), Gilberto Freyre nos leva a uma poderosa reflexão: “O que nos faz pensar nas ostras que dão pérolas.” A ostra, quando indesejadamente é ferida por um grão de areia e/ou parasita, reage produzindo pérolas. A lapidação da pérola é resultado da dor. Neste caso, ostras felizes são aquelas que não produzem pérolas.
O golpe, orquestrado por frações de classe, articulado com os gringos e apoiado pela grande mídia, que levou Michel Temer a assumir o governo, representa uma grave ferida no interior da sociedade brasileira. Para “chutar a escada” da massa de trabalhadores assalariados que estava ascendendo a padrões de consumo e serviços públicos que antes eram monopólio da alta classe média e média classe média, se faz necessário feri-los para que, assim, fiquem despossuídos.
Uma política de valorização social é frequentemente vista como “populista”, uma vez que promove a ascensão social da população. Nesse caso, o “populismo” é um impulso para um aumento social relativo de frações de classe historicamente marginalizadas. Ou seja, pode-se considerar que a política social-desenvolvimentista conjugada dos governos Lula e Dilma I como “populista”.
Nesses anos de “populismo”, os rendimentos da alta classe média e média classe média mantiveram-se estabilizados, enquanto o ordenado dos mais pobres foi elevado pela política de valorização real do salário mínimo – ver estudos do prof. Waldir Quadros.[1]
A decisão política da presidenta Dilma de reduzir a canônica taxa de juros assim com o spread bancário foi como cutucar onças com varas curtas. Desagradou ao capital financeiro e a frações de classe que têm rendimentos sob forma de lucros e dividendos isentos. A dor da ferida está na desvalorização dos títulos públicos, estabilização dos rendimentos da alta classe média e média classe média e na ascensão social dos miseráveis, massa trabalhadora e baixa classe média.
Adicionalmente, a robustez da Petrobras, lei de partilha para proteger a riqueza do Pré-Sal, constituição dos BRICS e fortalecimento do Mercosul desagradaram aos interesses dos Estados Unidos na região. Portanto, ferir os rendimentos das famílias que sobrevivem de renda, o capital financeiro que avoluma dinheiro fictício e os interesses do governo norte-americano foi motivo para apoio e financiamento do golpe.
Dado o avanço social da última década, o debate que está posto é que os gastos públicos com políticas de direitos sociais e garantias fundamentais não cabem mais no orçamento federal. Nessa acepção, ganha conotação a proposta do governo ilegítimo em desvincular despesa primária asseguradas pela Constituição Federal de 1988.
Falando em bom português, os neoliberais estão querendo dizer que não é mais possível fazer superávit primário razoável para garantir os rendimentos das famílias rentistas e do capital financeiro. Por isso as garantias constitucionais de vinculação de gastos em saúde, educação, previdência rural e benefício de prestação continuada já não cabem mais no orçamento.
Sem demora, é preciso provocar um ferimento nas famílias que sobrevivem de ordenados, privando-lhes do direito e garantias asseguradas pelo orçamento público. Neste caso, o ferimento está resumido nos seguintes planos: Uma ponte para o futuro do PMDB, Agenda Brasil do Senado Federal, Agenda da CNI para sair da crise 2016-18 e Proposta de Emenda Constitucional N° 241. O mais curioso é que nenhuma dessas propostas passou pelo crivo popular e democrático das urnas, isto é, não possui legitimidade.
Uma vez consumado o golpe, essas propostas passaram no dia seguinte a fazer parte da agenda do governo ilegítimo. Sob o pretexto da crise econômica, que deriva de um conjunto de encadeamentos, o corte de direitos sociais e garantias fundamentais estão colocados como condição sine qua no para sua superação. Como diz o prof. Pedro Rossi, o ajuste fiscal é o “Posto Ipiranga” dos economistas neoliberais, ou seja, eles creem que o ajuste é o antídoto mágico para os problemas macroeconômicos – desemprego, crise, instabilidade, incerteza etc…
Simultaneamente, os neoliberais estão pautando a crise pelo lado fiscal, dado que as despesas primárias passaram de 15% do PIB em 1998 para 20% em 2014. Atribuir às despesas primárias como “patinho feio” da crise econômica é ter uma visão reducionista da dinâmica da política macroeconômica. Esse “mito da gastança” apoia-se no aumento das despesas com benefícios sociais – Bolsa Família, aposentadorias e pensões do INSS, seguro-desemprego, SUS, dentre outros.
A redução das desigualdades sociais e o crescimento econômico pelo lado do aumento das despesas primárias culminaram em um círculo virtuoso que beneficiou não apenas os mais pobres, mas também as elites e do setor empresarial. O que irá determinar a velocidade da rotação do fluxo circular da economia capitalista é o gasto (público e/ou privado), e não ao contrário. Em uma economia capitalista, fortalecer a política de gastos públicos é condição imprescindível para iniciar a recuperação econômica.
Para retomar o desenvolvimento, optar por “uma reforma trabalhista simples, que flexibilize a CLT, como consta no documento Uma Ponte para o Futuro”, e afirma o prof. Yoshiaki Nakano em artigo ao Valor Econômico (09/agosto), é agravar a crise. O agravo da crise também se dá pelo teto do gasto (PEC-241), considerada como “fundamental” por José Ronaldo Souza Junior, do IPEA – entrevista ao Valor Econômico (09/agosto).
Estamos de acordo com o prof. Nakano que urge a necessidade de uma “reforma do Regime de Política Macroeconômica”. Mas optar pelos caminhos que estanquem os gastos públicos e retirem direitos sociais é ferir justamente aqueles que mais necessitam da intervenção do Estado, além de contribuir para deixar a economia brasileira patinando na crise.
A questão é que no contexto do atual do avanço das ideias ortodoxas, a teoria keynesiana que desencadearam as revoluções intelectuais modernas tornando-se um guia relevante para as políticas públicas está proibida, isto é, a Teoria Geral de Keynes entrou para o Index Librorum Prohibitorum.[2] Pasmem, os preconceitos da ortodoxia com a intervenção do Estado e os gastos públicos nunca foram superados.
Neste debate, a ortodoxia pouco tem a oferecer em matéria de sugestões políticas palpáveis para superação da crise. Logo, associar o ajuste fiscal social – que se traduz numa ferida social – a alternativa para superação da crise e para retomada do desenvolvimento é um mito.
Notas
[1] 1) Melhorias sociais no período 2004 a 2008 (2010). 2) 2009 a 2012: heterodoxia impulsiona melhorias sociais (2014). 3) Paralisia econômica, retrocesso social e eleições (2015).
[2] Fernando Nogueira da Costa (2016). Ajuste fiscal sem legitimidade democrática.
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