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Por um novo ‘quarto poder’: o popular

Existem hoje muitas tecnologias capazes de ampliar e democratizar a representação social na política. No entanto, essas tecnologias são pouco acessadas e utilizadas pelos movimentos de participação popular para promover e dar visibilidade à voz coletiva de forma suficientemente efetiva, legítima e transparente.

É tempo de construirmos, na esfera civil, uma memória coletiva, um espaço de deliberação popular e um legado compartilhado de dados que possam dar expressão ao poder cidadão, ensejar a soberania popular e o controle social, e promover o avanço da democracia em todos os poderes. Esse ensaio procura explorar caminhos para a construção dessa nova expressão de soberania democrática popular.

A soberania popular é central na democracia. Está intimamente vinculada com a capacidade de autodeterminação dos povos. Esta interface de conceitos e vivências trazidos, na teoria e na prática, do aprofundar do processo de descolonização e criação dos Estados/Nação. É a busca por autonomia, liberdade do povo de forma justa e igualitária.

É a tentativa histórica, paulatina e permanente, de frear os privilégios hereditários, divino-religiosos, de cor, gênero, sexualidade, capacidade, idade, origem, espécie, semeando o florescer de um mundo solidário, justo, onde a prerrogativa seja a dignidade de todos os seres e do planeta. Trata-se da luta contínua por paz e desenvolvimento para todos, e não apenas para quem detém o comando, a representação e a deliberação do uso da força coletiva de forma violenta em benefício próprio. O conceito da soberania popular nasce no século XVII e vem sendo posta em prática principalmente através da escolha de representantes.

Há uma crise generalizada nas democracias do mundo, de todos os espectros políticos (estimuladas ou não por guerras híbridas), e é consenso dos povos o desejo de exercer mais poder, direta ou indiretamente. É preciso procurar novas formas de dar segurança, transparência e legitimidade para os ramos das decisões coletivas, do uso do orçamento à criação das leis, passando pelas decisões jurídicas.

Podemos e devemos avançar em mecanismos participativos não eleitorais, evoluir a soberania popular das democracias, tornando-as mais legítimas, para além da representação institucional tradicional. Isso não significa deslegitimar instituições e pedir pela volta de regimes autoritários.

O Brasil é um exemplo na democracia direta, semidireta e indireta. A maioria dos brasileiros desconhece esse feito notável. Uma das principais referências são as conferências nacionais, que consistem em grandes assembleias públicas deliberativas. São o maior exercício de democracia direta no mundo. Permeiam diversas áreas temáticas, saúde, educação, meio ambiente, assistência social, etc. Apesar de grandiosa, essa ação coletiva carece de registros organizados, amplamente acessíveis por meio digital e transparentes nas diferentes esferas – municipal, regional, estadual. O pouco que se encontra são registros recentes das conferências nacionais. Não há ainda um portal/site para acessar a memória histórica desse processo coletivo, um registro desses atos públicos pertencentes ao povo. A consequência disso é a sensação de que essas deliberações não sensibilizam ou obrigam vereadores, deputados, prefeitos, governadores, promotores e juízes, a considerar essas decisões. Os portais de transparência tampouco têm a obrigação de trazer informações organizadas sobre esses mecanismos de participação social, mesmo que exista previsão legal. Seus dados, quando existentes, estão fechados. Isso dificulta imensamente a produção de conhecimento.

A soberania popular, a democracia direta e até mesmo a semidireta não recebem os mesmos investimentos e poder da democracia indireta, representativa. Por outro lado, a escolha de representação nos diferentes poderes é alvo de preocupação da imprensa, dispõe de grandes estruturas, instituições e orçamento público, porém se resumem à escolha dos chefes do Poder Executivo e dos membros das casas legislativas.

O Poder Executivo, no Brasil, guarda a disposição de escolher pelo povo o Procurador-Geral do Ministério Público e os juízes do Supremo Tribunal Federal. O judiciário é onde há menos poder popular na escolha de seus representantes e também o poder com menos participação e controle social.

A crise da democracia representativa liberal está em toda parte e foi promovida especialmente por lideranças e partidos que desejam diminuir o poder popular, principalmente para as minorias. Desejam reduzir a autonomia dos poderes constituídos. Estão unidos pelas pautas ultraconservadoras, utilizam-se de expedientes pararreligiosos e se esforçam para garantir retrocessos em direitos coletivos e individuais.

Hoje, temos a confirmação dessa decadência conservadora expressa no “Dissenso de Genebra”, que tem atualmente Bolsonaro como atual líder, após a perda tumultuada de mandato por Donald Trump, ex-presidente norte-americano. Esse grupo compartilha, além de semelhanças ideológicas, estratégias de uso massivo de tecnologia para manipular a opinião pública. Muitos estão na vanguarda do uso de robôs em redes sociais. Muitos desses usaram dos serviços da Cambridge Analytica e da orientação de Steve Bannon para saírem vitoriosos dos processos eleitorais para, na sequência, desacreditar a lisura dos procedimentos que os levaram ao poder.

A disseminação de notícias falsas (fake news) não fica restrita a essas lideranças conservadoras, são usadas por todos os espectros ideológicos, e tem contribuído muito para a desestabilização das democracias contemporâneas. A tecnologia é responsável por promover uma revolução na disseminação de informações, mas isso tem sido feito muitas vezes de forma descontrolada e perigosa. Mesmo com toda essa estrutura tecnológica, existe ainda uma carência sobre como tornar dados abertos um recurso efetivo de conhecimento que trabalhe concreta e diretamente em favor da população.

O marco legal de transparência e dados abertos – lei de acesso à informação, de transparência, o marco civil da internet e a LGPD – são mecanismos essenciais, mas ainda insuficientes. São arcabouços legais distantes da população, muitas vezes de difícil compreensão. Subsidiam órgãos de controle que, por trabalharem fiscalizando o ocorrido, não o que está ocorrendo, sofrem de insuficiência crônica de capacidade e recursos. Mas há perspectivas interessantes em vista.

O maior desastre ambiental do Brasil, o qual atingiu diversos municípios banhados pelo Rio Doce, resultado da negligência da Vale, proporcionou um consórcio de universidades por meio do qual foi possível garantir escuta e voz aos atingidos. Esse processo recebeu seis meses de preparação e foi conduzido por 18 meses subsequentes, durante os quais reuniu 3.483 participantes individuais de 5 municípios, que realizaram 507 propostas priorizadas por 23.990 votos[1].

O processo permitiu observar propostas e temas preferidos, ao longo do tempo, por tema e escala – comunidade, município e região. A circulação de jornais contendo trechos do banco de dados compartilhado, oriundo da consulta pública e das votações, promoveu a identificação das populações com a luta por direitos e criou coesão social na região. Por sua vez, isso possibilitou a formação de grupos de trabalho compostos por atingidos, Ministério Público Federal, Defensoria Pública, Secretarias Municipais e Universidades, que trabalham no processamento de dados e na elaboração de relatórios com base nos dados coletados. Esse processo foi liderado pelo Consórcio Acadêmico Rio Doce, composto por quatro universidades e um centro de estudo – USP, UFES, UNISINOS, IUPERJ e CEBRAP.

Trabalho semelhante foi desenvolvido para o Plano de Educação Ambiental do Rio Paraíba do Sul. Nesse caso a dinâmica reuniu 201 participantes de 160 entidades e 34 municípios, que realizaram 137 propostas priorizadas por 1.308 votos. Esse processo foi capitaneado pelo Instituto Fauser, em edital da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, com recursos da FEHIDRO e supervisão do Comitê de Bacia do Rio Paraíba do Sul[2]. Os resultados desses processos comprovam que há possibilidade de avançar na criação de mecanismos diretos de deliberação e de criação de informação e memória coletiva, não apenas em casos de tragédias.

A política nacional de participação social e o seu sistema nasceram durante a gestão Dilma Rousseff através do decreto 8243. Apesar dos pequenos avanços, ela foi recebida pelo Congresso Nacional com grande indisposição, beirando o descontrole de alguns parlamentares. Talvez muito se deva à tímida tentativa de organizar os mecanismos de diálogo e participação social, trazendo medo da perda de protagonismo aos legisladores federais.

Os conselhos de direito, políticas públicas e de equipamentos, populares representam o mais importante mecanismo de participação social do Brasil. É onde nascem as conferências. Sofrem em grande parte de problemas da negligência dos diferentes poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) em fazer valer o seu poder instituído em lei. Há mais conselheiros do que vereadores e deputados no Brasil. Esses são quase totalmente voluntários e custeiam a própria participação social. Representam as mais de 815 mil organizações da sociedade civil, segundo o mapa das OSC[3], na construção, normatização e fiscalização de todas as fases do ciclo das políticas públicas.

Ainda assim, são desconhecidos de grande parte da população e tem funcionamento precário, sem autonomia, dependente do Estado em todas as suas formas. Já passou o tempo de conferir aos conselhos – incluindo os de gestão – condições para o exercício pleno do poder popular. Quase todos os municípios do país têm conselhos [4]. Esses colegiados contam com leis que dizem que devem ter orçamento, estrutura, transparência, divulgação. Seus precários processos eleitorais poderiam ser unificados, como a recente escolha dos conselheiros tutelares – o único com remuneração e dedicação integral – provou ser possível.

Outra ação simples é a criação de sites/portais com informações organizadas, dados abertos e atualizados sobre o funcionamento desses colegiados, contando com registro de atas, representantes, deliberações resumidas, planos, propostas em andamento etc. É irônico que, com tantos avanços, os conselhos sejam renegados, invisibilizados, e muitas vezes estejam inativos ou tenham seu funcionamento reduzido à coleta de assinaturas de conselheiros partícipes. A produção acadêmica mais do que comprova a importância do bom funcionamento dos conselhos para o combate a corrupção e sustentar e aprofundar a cultura democrática.

Essa instância da participação social costuma ser alvo de muitas críticas – e amarga a falta de incentivos de toda ordem. Não há fiscalização do Legislativo sobre o seu real funcionamento e acompanhamento. O Poder Judiciário e o Ministério Público também deixam a desejar na proteção e amparo legal de conselheiros e conselhos. E o Executivo muitas vezes faz manobras com o uso da paridade e de suas cadeiras para forçar decisões e esvaziar as reuniões. Enquanto o fiscalizado (Poder Executivo, no geral) tiver paridade de votos/representantes nos conselhos, assistiremos a derrota da sociedade civil em realizar seus objetivos e deliberações.

Em 2019 ocorreu o maior ataque à participação social e à soberania popular do Brasil. Através do decreto 9759 de 2019, os conselhos nacionais foram alvo de um desmonte sem precedentes na história recente da redemocratização. Houve muita resistência e organização para defender sua restituição. O mais triste é que grande parte dos brasileiros não tem a dimensão da gravidade do ataque ao seu poder de criar o futuro do país. Como algo tão importante como a perda do poder popular não ocupa mais o debate público e privado?

No Brasil, a soberania popular está expressa no artigo 1° da Constituição de forma indireta, “todo poder emana do povo…”, e direta no artigo 14. Reza sobre o voto, o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular. O governo Fernando Henrique Cardoso realizou regulamentação sem participação social e debates com a sociedade, originando então a lei 9709 de 1998. Passados 24 anos, quantos projetos de lei de iniciativa popular federal foram propostos? Nenhum, segundo o “Relatório Projetos de lei de iniciativa popular no Brasil” do Instituto do Terceiro Setor (ITS)[5].

O único referendo realizado após regulamentação foi sobre o Estatuto do Desarmamento, e caiu por terra com a atual gestão federal, criando novas leis para flexibilizar o uso de armas. Não houve nenhum plebiscito após a regulamentação da soberania popular e apenas dois referendos (em nível nacional) anteriores à regulamentação do artigo. Isso diz muito sobre a crise democrática.

A democracia é muito mais do que exercício de escolha de representantes, a soberania popular também não está limitada à procuração dada através do voto. A cultura democrática é estabelecida em normas, leis, mas obviamente se consolida de práticas cotidianas pautadas em processos de decisões coletivas. Por que não estamos fazendo experiências consistentes com o uso de tecnologia para deliberações coletivas?

Ter mecanismos e ferramentas legais disponíveis, mas sem uso – “leis que ficam só no papel” – são uma forma de desacreditar valorosos recursos, apenas por falta consistente de exemplos do uso e ausência de incentivo. Por exemplo, a falta de interesse no funcionamento e potência dos conselhos é reforçada pelo desinteresse por fazer valer o poder popular, algo que acarreta em consequente perda de poder de representantes, em todos os poderes.

E se o povo estivesse apto a propor diretamente leis, para que serviria a representação legislativa? E se o povo realizasse efetivamente a distribuição dos recursos e decidisse a alocação do orçamento público, para que a representação executiva? E se computadores realizarem atividades jurídicas com maior eficiência, impessoalidade, economicidade, para que a representação político-judiciária?

Essas afirmações, ainda que sedutoras, carregam um perigoso ressentimento antipolítico. A razão pela qual o Legislativo, o Executivo e o Judiciário precisam existir, ainda que a deliberação direta seja possível, é uma só: é necessário que exista Estado. E é dentro do Estado que divergências, contradições e julgamentos morais da expressão popular serão tratados. Ou seja, do mesmo modo que a soberania popular exerce controle social sobre o Estado, cabe ao Estado garantir o justo bem-estar da sociedade. A dinâmica, portanto, é de mútua constituição.

Contudo, vivemos em um período histórico de crescente insulamento do aparato governamental, e é preciso encarar esse problema de frente. Weber uma vez chamou a imprensa de quarto poder. E se esse quarto poder fosse, não a imprensa, mas um circuito de comunicação política autônomo, popular e democrático? E se essa instância aproximasse o povo do Estado em diálogo permanente? Já existem prerrogativas legais para o exercício de consultas públicas – plebiscitos e referendos – por que não ocorrem de modo sistemático, sistêmico e permanente? Já existe tecnologia para tal. Já passa da hora de se implementar um Sistema Nacional de Participação Popular, dotado de tecnologia, pessoal, orçamento e mecanismos democráticos de controle civil popular. E por que não orçamento e receita própria? As grandes empresas de tecnologia não comercializam dados? E se dados oriundos da participação criassem um legado coletivo com valor atribuído?

A memória ligada às vitórias do povo organizado vem sendo apagadas e, muitas vezes, impedida de ser escrita. Fazer o registro dessa construção coletiva, do respeito pela diversidade e seus diferentes lugares de fala, deve ser uma prática prioritária do Estado e também uma reparação. Escrever e reescrever a história de forma justa nos registros oficiais sustentará a criação e a recriação pacífica do porvir da democracia. A crise da representação política é resultado da pouca expressão e esforço de apagamento da identidade de povos e da sua autodeterminação soberana.

O elevado nível de concentração de poder dos representantes do Congresso, em contraponto com o aumento da população, tem criado um insulamento crescente de Estado. Isso cria uma tensão. A conquista de melhores condições de vida, a ampliação do acesso ao conhecimento e a direitos por parte de parcelas antes excluídas da sociedade, grande parte devido à municipalização dos serviços públicos promovidos pela Constituição de 1988, vem criando essa tensão. Há dois caminhos. O recrudescimento da ação do Estado ou a ampliação da democracia.

A luta por dignidade, por quem sofreu com desumanidade, impulsiona a desestabilização de opressores que usam da representação política – executiva, legislativa e judiciária – para perpetuar a desigualdade em todos os níveis. O problema é que o poder constituinte não chega à ponta. Falta capacidade de Estado na escala da implementação das políticas públicas e a saída para esse dilema não é aumentar o Estado, mas aumentar a participação e a soberania popular.

A sociedade apresenta uma demanda infinita, sempre vai apresentar, e frente a isso não há Estado que baste. O que é o fenômeno global de golpes em democracias consolidadas, o aumento de conflitos armados, a concentração desenfreada de capital em empresas e seus proprietários, se não reações contra o avanço sistemático e histórico da soberania popular?

Outra forma usada para perpetuar essa desigualdade é emular e manipular o poder popular para destruir as instituições democráticas que deveriam estar justamente sendo recriadas e desenvolvidas para garantir a soberania popular. E para isso se manipulam os meios de comunicação em massa. O sucesso das redes sociais demonstra a sede e o alto grau de interesse popular em participar, controlar, criar e decidir sobre suas vidas. Ao permitir o sequestro desse debate e a captura de informações por manipulação algorítmica visando ao lucro, ficamos à deriva.

A participação social é cara em todos os sentidos, assim como a democracia. Exige tempo, conhecimento, persuasão, articulação, disponibilidade e capacidade para se estar presente nas disputas e nos conflitos. A tecnologia pode reduzir drasticamente esses custos, mas por enquanto tem concentrado ainda mais poder na mão das empresas de comunicação e dos seus donos.

O quarto poder continua o mesmo, uma máquina de veiculação ideológica, mas agora tecnologicamente aperfeiçoada. E não é preciso dizer que em um governo com tendências autoritárias, corporativistas e não-republicanas, uma base de dados é um recurso a partir do qual se desenvolvem ações de vigilância e controle por parte de órgãos de inteligência de Estado.

Passando despercebido do movimento social, em 2017 foi instituída pelo breve governo de Michel Temer uma política pública robusta, o Código de Defesa do Usuário dos Serviços Públicos – Lei 13.460. Concentrou grande poder nas ouvidorias e nos ouvidores. Criou novos mecanismos como a carta de serviços ao usuário, relatórios de gestão das ouvidorias, avaliação permanente dos serviços e ranking de reclamações. Apesar de criar conselho de usuários, são apenas consultivos. Ao invés de compor esse conselho com conselheiros de políticas públicas, e garantir a eleição de membros da sociedade civil para realizar o controle social, coloca o ouvidor (agente político) como o principal controlador dos serviços públicos. Faculta a escolha do ouvidor ao conselho de usuários, mas não cria uma obrigação. A atual legislação que regula o governo eletrônico se apoia nessas prerrogativas para colocar de lado, em definitivo, a participação social nas políticas públicas, a Lei 14.129 / 2021.

Não bastasse, testemunha-se também um movimento de controle e vigilância da atividade participativa. A ação participa.br realizada pela secretaria de governo do governo federal, por exemplo, em setembro de 2015 contava com 119 comunidades, 102 trilhas de participação, 13,5 mil usuários cadastrados, 400 mil comentários e mais de 6 milhões de acessos[6]. Foi uma ação de extraordinário sucesso, exceto pelo fato de que a base de dados contendo nome, entidade, e-mail, telefone e articulação de interesses desses 13,5 mil ativistas tenha sido capturada pela ABIN.

Não é especulação, é fato: “ABIN tem Mega Banco de dados dos Movimentos Sociais“, diz a matéria do The Intercept de 2016[7]. Com isso, o governo subsequente teve condições de arbitrar pela revogação, indeferimento ou continuidade de processos e contratos com precisão milimétrica, não necessariamente com bases nos programas apresentados, mas com base em quem fazia parte desses programas, no que acreditavam e com quem estavam articulados. Como demonstra a matéria, a constituição desse banco foi paulatina, uma ação proposital de Estado. Frente a isso nos perguntamos, qual o seu propósito? Posteriormente, em 2016, essa base foi incorporada pela ABIN, frente a que nos perguntamos, novamente, para que propósito?

É certo que bases de dados devam ser constituídas e colocadas a serviço do bem público, mas como? Novamente o trabalho realizado pelo Consórcio Acadêmico Rio Doce nos dá uma pista. Aqui, os dados do levantamento realizado ficaram sob guarda do consórcio, mas foram compartilhados com a Defensoria Pública, Ministério Público, universidades e secretarias municipais, o que permitiu a formação de grupos de trabalho, a produção conjunta de relatórios técnicos e a instrução de processos legais.

Essa experiência aponta para a possibilidade de criarmos bases de dados abertas, compartilhadas, transparentes, repositórios de dados de guarida civil, subsidiando a ação pública. Não se trata, portanto, de controle social da ação do governo, mas de ação civil com controles mútuos, auditáveis e abertos, subsidiando a própria sociedade civil, o interesse público, a ação de órgãos de controle e do Estado.

Esse tipo de experiência possibilita a criação de uma memória coletiva e compartilhada dos direitos do cidadão. Nessa experiência, as votações deram origem a bases de dados, mas também a painéis locais de informação e jornais periódicos que informavam o que acontecia naquele e nos demais locais de participação. Divulgavam as principais propostas e necessidades de cada comunidade, a votação de cada proposta, totalizações por cidade, região e tema; local e data de debates e andamento dessas pautas junto a institucionalidades. A renovação de pauta ocorria por votações permanentes, periódicas e cumulativas.

Não é preciso grande imaginação para perceber que o cumprimento de metas de campanha e a escuta das necessidades da população podem ter origem nessas consultas e constituir assunto de pauta cotidiana, permanentemente acompanhados por votações nos bairros. O que difere essa iniciativa das demais iniciativas de jornalismo de bairro é que, nesse caso, o sistema de votação permanente mantém o pulso coletivo livre, autônomo e exposto. A distribuição de pontos de votação e de disseminação de resultados locais e globais cria um legado contundente de dados.

Podemos coletar centenas de milhares ou milhões de votos, aglutinados em torno de milhares de proposições, que organizadas constituem pautas vivas. Foi assim no Rio Doce, por que não poderia ser igual em outros lugares? Isso confronta a efetividade do sistema político e seu modo de representação, traz o pulso da base a tona e impele as instituições de Estado ao trabalho. Isso tem poder, é voto e opinião, é soberania popular.

Como funcionaria isso? Esse modelo massivo de participação já está implementado nas mídias sociais, mas tem forma de uma infraestrutura de vigilância e controle. No modelo vigente os resultados das contribuições coletivas são apropriados e comercializados pelos donos dessas mídias, e o cenário geral da expressão coletiva é manipulado de acordo com interesses comerciais e políticos. Trata-se, portanto, de construir um modelo transparente e acessível voltado ao interesse democrático popular. Muitas tecnologias podem ser utilizadas para isso: DAOs, Blockchain, ou mesmo sem qualquer programação, como aconteceu no Rio Doce.

A tecnologia está aí e a metodologia já existe. Há conselhos implementados e precedentes de apoio dos órgãos de controle.

É momento da expressão popular florescer expressão própria. Não se trata de eliminar o sistema político, mas de deslocar a formação de agenda para o campo da consulta popular e de se instituir ferramentas para formulação e interpretação permanente de significados dessa voz coletiva. Esse enraizamento popular da etapa de formulação de agenda necessita de pontes com o campo político, e cabe aos conselhos fazer isso. Trata-se de embasar o processo político por meio da soberania popular e sua expressão plena e democrática, e impedir o isolamento regulatório e legislativo, a legislatura em causa própria e o estabelecimento de arquiteturas iliberais de Estado.

Essa iniciativa, por sua vez, reforça a centralidade da dimensão pedagógica da participação. Dialoga com a pletora de dinâmicas participativas já existentes. Propõe, contudo, que aconteçam tendo como matéria-prima e pano de fundo proposições e votações permanentes que questionam o cotidiano, em diálogo com Paulo Freire. Isso abre perspectivas para toda uma era de jogos democráticos e de inteligência coletiva, cujo resultado são bases compartilhadas de dados. Dinâmicas de construção coletiva dos direitos da terra e dos povos, fazendo brotar uma nova e permanente soberania popular.

O Sistema Nacional de Participação Social pode e deve, portanto, ser revivido. Mas isso deve acontecer sob novas condições, com uma ancoragem que não seja apenas a atuação participativa dentro do Estado e das suas instituições, mas um movimento envolvendo todas as organizações da sociedade civil em uma construção mais ampla. Um exercício de participação social direta, que amplia o controle social de todos os poderes e quem sabe, como citado acima, faça germinar um novo quarto poder, composto por um ecossistema pétreo da soberania popular. Deve ser, portanto, composto por um Sistema Popular de Participação Social, um modo participativo que componha uma base de dados compartilhada ampla e transparente, contendo demandas de suas populações e expressões de sua autodeterminação. E que a partir disso seja composto o Sistema Nacional de Participação Social, cujo cerne de funcionamento são os conselhos.

Que jamais um governante ou um Congresso Nacional degenerado possa revogar o direito adquirido pelo povo. Que antes o povo possa retirá-los do poder. E que nunca mais 145 pedidos de impeachment fiquem deitados tranquilos em uma gaveta irresponsável. Além do poder de iniciativa, iremos forjar o poder de pauta popular, onde poderemos coletivamente inserir e retirar leis da votação e fazer valer a vontade do povo nos canais de representação.

Crédito da foto da página inicial: Claudio Fachel/Arquivo Palácio Piratini (Governo do Rio Grande do Sul).

Referências

[4] Entrevista com Adrian Lavalle: No exercício da democracia, Revista Fapesp

[6] Peixoto, A. D. C. (2015). Instrumentos da democracia participativa: um estudo sobre o Participa. br e o Dialoga Brasil.

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