Darcyanas
Relutamos em ministrar o curso por não conhecermos Darcy. Chamamos colegas para se somarem a nós. Sempre a mesma reação: ‘Sobre Darcy, fantástico!, mas não conheço o suficiente’. Será mesmo que ninguém o conhece? Ou sua penetrante, mas silenciosa influência o tornou invisível?
– Stelio, camarada, maldita a hora em que você inventou de ministrar esse curso sobre o Darcy Ribeiro. O cara escreveu muito e sobre tudo.
– Alexandre, mermão, eu avisei que ia dar trabalho. Mas você topou porque esse era o ano do centenário de nascimento do Darcy. “Uma questão de honra” – não foi assim que você disse?
– Bom, então me explica essa história que está no texto do Glauber sobre o Darcy. Que “Lévi-Strauss confunde Arqueologia com Antropologia. Eu penso no homem do futuro”.
– O Darcy disse isso? Como assim?
– Sim, tim-tim por tim-tim. Te peço explicação porque eu nunca li Lévi-Strauss direito, sei que você conhece o pensamento dele e já me disse que o francês é um gigante…
– Bom, xá comigo. Eu te respondo em sala de aula. Mas depois, em troca, você me explica aquela conversa da aula passada de que Darcy é o Gilberto Freyre virado de cabeça pra baixo, tá?
– Era apenas uma hipótese, camarada. Vou desenvolver em sala de aula, mas só depois que você me responder à pergunta que te fiz…. kkkk….
-Hahaha, está bem. Fiquei curioso. E pode crer que você vai adorar o francês. Acho que Darcy gostava também, mas à sua maneira.
– Beleza. Ate amanhã. Almoçamos juntos antes da aula.
Essa conversa não aconteceu, mas poderia ter acontecido. É verossímil, portanto. Revela a aventura interdisciplinar a que se lançaram dois professores de uma universidade pública brasileira, mais particularmente no IEB, o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, na abordagem de um autor que ousou atravessar searas de atuação pública e de produção do conhecimento.
Esses professores se meteram a dar um curso de pós-graduação sobre Darcy Ribeiro no ano do seu centenário de nascimento. E, para tornar a sua vida ainda mais difícil, escolheram um título vistoso e sonoro: “O Brasil e os brasis de Darcy Ribeiro: modos de herdar o seu pensamento”. Sim, um pensamento que eles ainda não conhecem o suficiente e que será objeto de triagens e provações contemporâneas. Bem examiná-lo para bem saber herdá-lo. Hoje.
Por que o fazemos? Porque alguém precisa fazê-lo, dada a magnitude desse autor e para romper, não só na USP, certo silêncio sobre ele nesses tempos bicudos. O que nós temos? Uma universidade pública. Que tem um prédio, uma Biblioteca e um Arquivo com livros e documentos de alguns dos principais intelectuais brasileiros, organizados por funcionários dedicados e competentes. E alunos de várias áreas do conhecimento dispostos a enfrentar a aventura proposta, cada um com seu cabedal e experiência.
O que sabemos, aprendemos e ensinamos? Como explorar um autor, lendo-o a partir de diversas lentes, inclusive para questioná-lo. Eis o que significa herdá-lo, junto com os integrantes do curso. Cada qual se apropriando de Darcy nas suas pesquisas e transformando-o numa ferramenta viva para enfrentar os dilemas da nossa contemporaneidade.
A pergunta do título suscitou em sala de aula muita discussão e outra pergunta. Por que ninguém conhece Darcy? Nós relutamos em ministrar o curso por não conhecermos Darcy. Chamamos colegas para se somarem a nós. Deparamo-nos sempre com a mesma reação: “um curso sobre Darcy, fantástico!, mas não conheço o suficiente sobre a sua obra”. Será mesmo que ninguém conhece Darcy? Ou sua penetrante, mas silenciosa influência o tornou invisível?
Lançamos aqui algumas hipóteses. Primeiro, nosso personagem como ele mesmo gostava dizer mudava de peles como as cobras. São várias. O filho de Dona Fininha, professora do ensino primário. O etnólogo e o indigenista. O educador, criador e reformador de universidades. O homem público que fez política. O cientista social dedicado aos estudos de antropologia da civilização. O romancista. Há um elo a soldar tantas peles, de que tanto gostava Darcy, mas solda que não o torna homogêneo, compacto e sem impurezas? Será que, desempenhando tantos papéis, não teria, como ele mesmo destaca, “se dispersado demais, perdendo consistência biográfica”[1]?
Outra hipótese. Se em Darcy tudo é apaixonado, provocando reações de idolatria ou desprezo, não se poderia cogitar que, neste caso, a personalidade ofusca o intelectual? Talvez não fosse o caso de desconfiar de Darcy como condição para levá-lo a sério? Concentrar na obra, sim, mas sem perder de vista o personagem tão exuberante…
Escrever sobre Darcy geralmente significa tomar um partido sobre Darcy. Helena Bomeny, na sua obra dedicada ao mestre, traça um perfil do intelectual, destacando o inusitado da sua trajetória, para, enfim, concentrar a sua análise no educador, “último expoente da Escola Nova”. Não sem antes destacar “a concepção missionária” de quem se arvora a ser a mão condutora capaz de salvar a nação de uma “elite madrasta”[2].
Como compor esse salvacionismo ilustrado com o protagonismo dos movimentos sociais cada vez mais emergentes e que não raro recusam porta-vozes que não se desprendam de suas franjas?
Na contramão deste olhar situado na academia, que problematiza a “indisciplina” darcysística, Gilberto Felisberto Vasconcelos exalta o intelectual “insubmisso”, além de “vário, múltiplo, multifacetado, poliédrico”. Espécime cada vez mais raro de um país em que “a dependência é desejada pela academia universitária”[3]. Será mesmo assim?
Não há o risco de escolher aquele Darcy que mais nos interessa? É possível um Darcy de corpo inteiro, mas multifacetado em suas muitas peles e menos plumas? Um esforço neste sentido é realizado por Andrés Kozel e Fabrício Pereira da Silva[4], utilizando o conceito de “bricolagem em movimento” para fisgar a obra do mestre. Modo de compor o que não se deixa compactar?
Como se percebe, é ainda pouco o que conhecemos sobre Darcy. Ao final do curso, esperamos trazer mais respostas em formas de perguntas. Até breve.
Uma última pergunta: você já leu o seu Darcy hoje?
Referências
[1] Darcy Ribeiro. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 303-311.
[2] Helena Bomeny. Darcy Ribeiro: sociologia de um indisciplinado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 25-28, 62-64, 71.
[3] Gilberto Felisberto Vasconcelos. Darcy Ribeiro: a razão iracunda. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015, p. 11, 43-44, 57-58.
[4] Andrés Kozel & Fabrício Pereira da Silva. “Estudo Preliminar”, In: Os futuros de Darcy Ribeiro. São Paulo: Elefante, 2022, p. 9-12.
Alexandre de Freitas Barbosa é professor de Economia no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Autor, entre outros livros, de “O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto, interpretação e utopia” (Ed. Alameda).
Stelio Marras é professor de Antropologia do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).
Edição de fotografia: Nara Quental
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