Inicia o governo interino de Michel Temer (PMDB) com muitas incertezas sobre o que se espera para a área social. Mas as indicações contidas no documento “Travessia Social” trazem um panorama sombrio para o combate à pobreza no Brasil e para a questão social em geral.
O Brasil contém hoje uma ampla (mas ainda insuficiente) rede de proteção social, que veio ao longo dos anos retirando milhões de brasileiras e brasileiros da pobreza. Mas o documento propõe mudanças na política social brasileira que poderiam retirar diversas destas garantias, reforçadas por declaração do ministro de Desenvolvimento Social do governo interino, Osmar Terra.
Assim como no “Ponte para o futuro”, no “Travessia Social” a questão social aparece subordinada aos objetivos de “equilíbrio fiscal”. O documento apresenta a questão social atrelada a mecanismos de mercado e é inspirado na teoria do capital humano, em que os pobres seriam pobres por não se inserirem adequadamente no mercado. Desconsidera-se assim o que a literatura chama de “workingpoor”: pessoas inseridas no mercado de trabalho, mas na categoria de pobres. Esse, diga-se de passagem, é o caso de parte dos beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF), que, apesar de realizarem trabalhos informais, não têm renda suficiente e acesso a direitos fundamentais.
O PBF, tão elogiado em nível internacional por organizações como FAO, Banco Mundial e CEPAL, e com efeitos tão grandes na redução da pobreza no Brasil na última década, é, ao mesmo tempo, um programa “barato”, consumindo montante equivalente a apenas 0,5% do PIB brasileiro. Ainda, a cada R$1 gasto no programa, R$1,78 são adicionados ao PIB. Outros mitos sobre o PBF são discutidos em artigo de Barbara Gontijo aqui no Brasil Debate.
Mas o “Travessia Social” aponta que o enfoque da política social deve ser nos 5% mais pobres da população brasileira (10 milhões de brasileiros), sem justificar o porquê do número 5%, não se baseando assim nas medições nacionais e internacionais para a definição de pobreza. A proposta do PMDB é apresentada como uma forma de “reduzir para ampliar”, no entanto a redução do escopo pode trazer retrocessos na luta contra a pobreza em suas diversas formas.
Ipsis literis, o documento propõe “expandir o sistema de proteção social para os 10 milhões de brasileiros que compõem os 5% mais pobres e que, por variadas razões, não estão integrados na economia nacional. Uma focalização especial neste segmento de excluídos não requer uma revisão substancial da política social brasileira, mas sim um aprofundamento daquilo que já fazemos bem, com mais descentralização, pois se trata, aqui, predominantemente, de grupos humanos esparsos, vivendo em pequenas comunidades isoladas. Isso significa manter e aprimorar os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família.”
Há de se aguardar ainda quais serão as medidas concretas que serão tomadas nesse sentido, porém, sinaliza-se que, na Edição extra do Diário Oficial da União de 12 de Maio de 2016, há um item que seria atribuição do novo Ministério da Educação e Cultura: “assistência financeira a famílias carentes para a escolarização de seus filhos ou dependentes”. Seria uma tentativa de reinstaurar o Programa Bolsa Escola, que havia sido incorporado pelo Programa Bolsa Família?
Voltando ao documento, seu argumento é de que a população contida entre os 5% e os 40% mais pobres do país está perfeitamente inserida no mercado e, portanto, teria as condições de competir no mercado de trabalho (leia-se: “O desafio seguinte, em ordem de prioridade, é alcançar os 70 milhões de pessoas que compõem o segmento situado acima do limite de 5% até o de 40% mais pobres. Este segmento foi o que teve mais êxito em se beneficiar do progresso recente, tirando proveito da expansão do emprego, da formalização e da elevação da renda do trabalho, em especial dos aumentos reais do salário mínimo. Ao contrário dos mais vulneráveis, esta parte da população está perfeitamente conectada à economia nacional”).
O documento assim ignora a realidade do mercado de trabalho brasileiro, que reflete a nossa estrutura social de profunda desigualdade (de gênero, raça, regional e social), além da altíssima informalidade e rotatividade.
Se tal proposta fosse aplicada ao PBF, segundo estimativas de Ana Fonseca, passaríamos de 13,8 para 3,2 milhões de famílias atingidas pelo PBF hoje, caso o programa seja reduzido. Já Tereza Campello aponta que a proposta do PMDB não pode ser chamada de PBF, pois descaracterizaria o programa e cerca de 40 milhões de brasileiros poderiam voltar à miséria.
Além dos riscos ao PBF pela hiperfocalização apresentada, o documento ainda trata a educação como um instrumento para o aumento da produtividade pura e simplesmente, desconsiderando seu papel na formação crítica dos cidadãos.Emprega ainda termos desatualizados para descrever a mesma, como “1º e 2º grau”. Na saúde, há indicativo de ampliação da mercantilização da mesma e riscos para programas como SAMU e Farmácia Popular.
Para a saúde e educação, há o risco da desvinculação constitucional das receitas para o setor, ampliação da DRU e ainda a chamada “DRU dos Estados”, propostas para ampliar o espaço fiscal do Estado retirando recursos da área social.
Espera-se também a tentativa de uma ampla reforma previdenciária (com a clara sinalização dada com a ida da pasta da Previdência para o Ministério da Fazenda) e trabalhista (vide declarações do Ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, demonstrando apoio à terceirização irrestrita no Brasil), de forma a jogar aos trabalhadores o custo da crise e reduzir direitos, em especial em um momento de fragilidade da classe trabalhadora devido à deterioração dos índices do mercado de trabalho. Sem falar no desprezo pela pauta da Igualdade Racial, das Mulheres e dos Direitos humanos.
Assim, apesar de não haver sinais no curto prazo de recuperação da economia – em especial considerando as medidas do governo provisório que visam a cortar o que resta de dinamismo na economia, como o investimento público e o consumo das famílias -, ainda que o país se recupere, se aplicadas as medidas apresentadas no “Travessia Social”, a recuperação se dará inevitavelmente em um patamar de mais desigualdade e menos instrumentos para o combate à pobreza. E arrocho é o contrário da proposta que tem sido sistematicamente vitoriosa nas eleições presidenciais na última década e meia no Brasil.
A sociedade brasileira aceitará passivamente tamanhos retrocessos?
Crédito da foto da página inicial: Vladimir Platonow/ABr
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