Saiu recentemente na revista The Economist um interessante artigo sobre o que a publicação denominou como meritocracia hereditária. O argumento central é de que os filhos da elite, justamente por serem filhos da elite, são preparados de tal maneira que estas crianças não só chegam ao topo, mas são merecedoras desta situação uma vez que atingem os padrões da meritocracia melhor do que seus pares. Fazem, portanto, jus ao status que herdam.
É inevitável recordar uma crônica do cineasta Cacá Diegues publicada na revista Piauí, intitulada Seleção Artificial que trata do aparecimento, no futuro, do Homo ricus, desenvolvido a partir de uma parcela da população que tem acesso a serviços avançadíssimos de terapia genética na fronteira tecnológica dissociada dos demais Homo sapiens. Os lucros com esta se tornariam de tal modo elevados que os laboratórios deixariam de fabricar os medicamentos convencionais para os homens comuns.
As diversas formas de acesso a bens e serviços mais ou menos privilegiada de acordo com o status social pode catalisar esse processo de transformação da divisão social em classes para uma divisão em espécies. A própria existência de sistemas não universais de saúde e educação exclusivamente públicos contribui para esta evolução. Devemos inclusive iniciar um debate para refletir sobre a vedação da existência de provimento privado para tais serviços.
Em junho de 2014, 815 cientistas de 82 países lançaram carta aberta em que pedem a suspensão imediata de todas as licenças ambientais para cultivos transgênicos e produtos derivados dos mesmos, tanto comercialmente como em testes em campo aberto, durante ao menos cinco anos. Exigem ainda os cientistas que fazem pesquisas públicas sobre o futuro da agricultura e da segurança alimentar. Não é seguro afirmar que os transgênicos não representam riscos à saúde da pessoa.
Ademais, no último dia 28 de abril, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva lançou uma nova edição do Dossiê Abrasco – um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. O dossiê lembra que o Brasil hoje é o maior consumidor destes produtos no mundo e nos alerta sobre os riscos do uso excessivo dos agrotóxicos tal como a contaminação dos ecossistemas, o que resulta em sérios problemas para a saúde tanto no campo como nas cidades.
Ora, quem quiser fugir do consumo dos transgênicos e dos venenos, terá que optar por uma alimentação orgânica. Aí retomamos a seleção artificial de Diegues, desta vez não pelo acesso aos serviços de manipulação genética, mas pelo acesso aos alimentos saudáveis. Os produtos orgânicos são tão mais caros que apenas uma parcela mais abastada da população tem acesso a eles, não estando suas vidas submetidas ao adoecimento precoce decorrente do consumo de alimentos envenenados.
Tanto a meritocracia hereditária como a seleção artificial são resultados de uma falha da economia de mercado, ainda que ela funcione do modo mais perfeito que os modelos neoclássicos possam conceber: a alocação inicial dos fatores desigual.
O conceito de eficiência subjacente na economia neoclássica é aquele proposto por Pareto, ou seja, qualquer cenário em que não se possa melhorar a situação de alguém sem piorar a situação de outro é um ótimo de Pareto. A eficiência de Pareto, contudo, não busca um ótimo social e tampouco se preocupa com questões de equidade.
Em termos mais claros, o primeiro teorema do bem-estar coloca que equilíbrios de mercado competitivo são eficientes de Pareto. Por outro lado, o segundo de teorema do bem-estar afirma que, desde que as curvas de preferência sejam convexas, alocações eficientes de Pareto podem ser alcançadas via equilíbrios de mercado. Ou seja, se os problemas de distribuição e eficiência podem ser separados, são as dotações iniciais que determinam a riqueza individual. Uma política eficaz de distribuição de renda deveria, portanto, focar preliminarmente na redistribuição da dotação, redistribuir a riqueza.
Thomas Piketty, em O capital no século XXI, demonstra por meio de séries históricas seculares que a desigualdade é inerente ao capitalismo. Com base em pressupostos plausíveis (que os ricos poupem o suficiente), a proporção entre riqueza herdada e renda (ou salários) continuará a crescer desde que a taxa média de retorno do capital exceda a taxa de crescimento da economia como um todo. Ele sustenta que esse é o padrão histórico, exceto durante a primeira metade do século 20, quando tivemos duas guerras mundiais e a revolução russa.
Vivemos num modelo no qual a desigualdade crescerá a níveis nunca antes vividos. Os argumentos de Piketty reforçam o questionamento sobre os problemas de uma alocação inicial dos fatores desigual. Transações voluntárias não são capazes de se contrapor a grandes diferenças na dotação inicial e algum tipo de transferência terá de ser realizada com este fim.
O que temos é que tanto a meritocracia hereditária apontada pelo The Economist quanto a seleção artificial, não de todo implausível, de Diegues, decorrem de um modelo socioeconômico em que as desigualdades são reforçadas pelo processo histórico. Pode ocorrer um momento em que, mesmo sem a divisão genética de espécies, nossa elite se considere (se é que já não se considera) superior aos demais extratos populacionais. Não seria surpresa se retomassem a ideia de soluções finais.
Se a distopia assusta, a realidade social de um mundo onde uns são mais iguais que os outros dói. Os sonhos da sociedade ocidental de liberdade, igualdade e fraternidade não passarão de sonhos se alguns pontos não forem abordados.
Para usar o equilíbrio de mercado como um mecanismo de justiça social, teríamos que repensar toda a distribuição inicial dos recursos: o direito de herança precisa ser debatido; imposto sobre grandes fortunas deve ser imediatamente implementado; expropriações têm que estar no centro do debate não apenas pela figura da função social da propriedade, mas também para que as dotações iniciais sejam ajustadas adequadamente para um resultado eficiente e socialmente mais justo. Enfim, o que defendemos é bem simples: a igualdade na distribuição inicial da riqueza para todos.
Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil
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