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PEC 55 e a Reforma da Previdência: não querem mais dividir o bolo

Publicada na Carta Maior em 13-12-2016

Nesta terça-feira, dia 13 de dezembro, está marcada a votação que irá sacramentar a maior mudança constitucional desde a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. Não deixa de ser emblemática a data escolhida para a votação, em segundo turno no Senado Federal, da PEC 55 (ex-PEC 241), dia 13 de dezembro, mesma data em que, há 48 anos, foi decretado o Ato Institucional nº 5, o AI-5.

A coincidência de datas não parece ser por acaso. Infelizmente, há semelhanças entre o que está acontecendo este ano no Brasil com o que se passou na ditadura militar, em especial no ano de 1968, quando, por meio de uma medida arbitrária, o sistema revelou a sua crueldade e quando a certeza de que o período seria mais longo do que o esperado se concretizou.

Em 2016, voltou-se a se falar em golpe de Estado, em privação à liberdade de expressão e de pensamento nas escolas e até em atos “contra o comunismo”. Os estudantes intensificaram suas manifestações em escolas e universidades e foram duramente reprimidos.  Mas a coincidência de datas também está associada ao padrão de desenvolvimento que se quer implantar no Brasil nos próximos anos, bastante semelhante ao que se instaurou a partir de 1968. Esse padrão reverte avanços dos últimos dois governos, que colocaram a distribuição de renda como o principal motor do desenvolvimento econômico.

A partir de 1968, o Brasil viveu o chamado Milagre Econômico, acentuando uma tendência de crescimento que o País já apresentava. Entre 1930 e 1980, o Brasil foi um dos países, se não o País, que teve o maior crescimento econômico, acelerado a partir de 1968. No entanto, como ficou célebre, esse foi o período em que bolo cresceu, mas o povo continuou passando fome e as desigualdades só aumentaram.

Os dados levantados em estudo do IPEA demonstram que entre 1960 e 1991 houve um aumento acentuado da desigualdade no Brasil e que essa tendência só se inverteu a partir de 1991. A queda da desigualdade se acelerou na década de 2000 e, apesar de tomar um ritmo mais lento, continuou a ser reduzida, inclusive, em 2015, ano de reversão de diversos indicadores sociais conjunturais – porém, sendo mantida a tendência estrutural. Os resultado dos anos 2000 demonstram que, apesar de relevante, o controle inflacionário não explica essa aceleração na queda da desigualdade.

O fator central para explicar essa inflexão a partir de 1991 foi, sem dúvida a redemocratização e a Constituição de 1988. Esses dois fatores essenciais passaram a moldar o orçamento público, em especial a parte primária, e garantiram mecanismos distributivos essenciais. Além do avanço na redução da desigualdade de renda, em 2014, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) declarou que o Brasil estava oficialmente fora do Mapa da Fome. O nível de pobreza extrema alcançou o menor patamar, e a participação dos salários na renda manteve a sua tendência de alta iniciada em 2004.

Essas conquistas importantes estão diretamente associadas às decisões de política fiscal, muitas decorrentes da implantação de direitos básicos definidos na Constituição e outras de escolhas discricionárias de políticas econômicas e sociais.

Em 2016, diante de um agravamento do quadro econômico, o governo definiu quem são os culpados pela crise no Brasil: os brasileiros. A cada medida anunciada pelo governo Temer fica claro o descaso com a população brasileira. Como ressaltou o Senador Roberto Requião em seu pronunciamento contrário à PEC 55, estamos vivendo a música do Chico Buarque, que aponta: “o malandro (…) é julgado e condenado culpado pela situação”.

Aproveitando-se de uma situação conjuntural, de queda da arrecadação e de manutenção das despesas previdenciárias e assistências, o governo procura passar uma ideia de colapso fiscal, em especial na área da seguridade social. Para tentar resolver, propõe mudanças da regra da saúde, reforma da previdência e desvinculação dos benefícios assistenciais do salário mínimo.

Essa piora do resultado fiscal em momentos de desaceleração econômica é conhecida como estabilizador automático da economia, justamente por criar mecanismos para sua recuperação. A queda da receita e a manutenção dos gastos sociais ampliam a renda disponível do setor privado, evitando o colapso na renda, que ocorreria devido ao aumento do desemprego e ao fechamento de empresas.

Os anos anteriores, em especial até 2013, demonstram que esse sistema não era deficitário – ao contrário, enquanto a economia crescia, as receitas da seguridade cresciam mais do que as despesas, garantindo o seu financiamento.

Vivemos, até 2013, o chamado círculo virtuoso. O aumento dos gastos sociais e de investimentos públicos gerou mais crescimento e garantiu o aumento da arrecadação. Durante vários anos, não houve qualquer descontrole das contas públicas e houve uma queda constante da taxa de desemprego, até atingir o menor patamar em 2014. A trajetória positiva levou a aumentos constantes dos salários reais e ao consequente aumento da participação dos salários na renda de 2004 a 2014, último dado divulgado pelo IBGE.

Essa trajetória dos salários gerou a reação que foi descrita pelo economista Michal Kalecki, em 1943, no texto “Aspectos políticos do pleno emprego”. Como Kalecki apontou, os ganhos distributivos dos trabalhadores geram uma reprovação à interferência do governo no problema do emprego. Há uma reprovação às mudanças políticas resultantes do pleno emprego, pois essas aumentam o poder de barganha dos trabalhadores.

Nesses momentos, segundo Kalecki, é preciso recompor a função social da doutrina de “finanças públicas sadias”, pela qual o nível de emprego deve depender exclusivamente do “estado de confiança” dos empresários. Quando o ritmo de atividade depende dos empresários, tudo o que possa abalar o “estado de confiança” destes deve ser evitado. Esse é exatamente o discurso que estamos ouvindo para garantir a aprovação da PEC 55 e que ouvíamos, ainda mais forte, em 2013, quando se dizia que era preciso aumentar o desemprego para reduzir a inflação.

Para isso, é preciso acabar com a possibilidade de que qualquer governo eleito, nas próximas quatro eleições, tente algo parecido com o que foi feito. Esse é o grande objetivo da PEC, reduzir as despesas públicas federais para contrair cada vez mais o tamanho do Estado brasileiro e impedir que atue para a manutenção do crescimento econômico e do emprego.

A aritmética da PEC 55 é muito simples: os gastos primários federais crescerão apenas pela inflação, medida pelo IPCA, enquanto o PIB crescerá não só pela inflação, mas também pelo ganho real. Sendo assim, a cada ano, as despesas federais crescerão menos do que o PIB, garantindo assim, uma queda da despesa em relação ao PIB.

Além de impedir a atuação do Governo Federal, será possível ampliar o superávit primário, a economia para pagar os juros da dívida, sem ter que alterar a arrecadação federal, abrindo espaço, inclusive, para a redução da arrecadação em um futuro próximo. Portanto, evita-se assim cobrar de quem não paga.

A proposta do governo, segundo os próprios documentos de divulgação oficiais, prevê uma queda de 0,5 p.p. do PIB ao ano das despesas primárias do Governo Federal, atingindo um corte total de 5% do PIB em 10 anos, se a economia crescer em média 2,5% ao ano. Para atingir esse patamar de corte, não se trata de escolha de prioridades, mas sim, de cortes sucessivos.

A composição dos gastos primários federais é majoritariamente de gastos sociais. Portanto, a PEC irá impor uma sequência de reformas. Começou pela redução dos mínimos constitucionais de saúde e educação e da proibição de aumento real do salário mínimo, sempre que estourar o teto de gastos.

Na semana passada, dia 6 de dezembro, foi enviada ao Congresso, a peça fundamental para tentar viabilizar o ajuste proposto, demonstrando o total desprezo pelo sistema de seguridade social. Depois de alterar a saúde, o governo agora enviou uma proposta que destrói os sistemas de Previdência e Seguridade.

É importante notar que o objetivo da reforma apresentada em nada tem a ver com a sustentabilidade do regime previdenciário. Ao contrário, o único objetivo é tornar o teto declinante da PEC 55 viável. Portanto, o grande objetivo das reformas apresentadas é ter uma ganho fiscal no curto prazo, no horizonte de vigência da PEC, ou seja, nos próximos 10 anos.

Para ter um ganho rápido, é preciso atingir todos os atuais contribuintes do regime da previdência, sendo que os homens com menos de 50 anos e mulheres com menos de 45 anos terão o sistema totalmente alterado. Essa é uma medida para que a reforma tenha efeito a curto prazo, sem qualquer respeito aos direitos dos trabalhadores que já contribuíram durante anos para a previdência acreditando numa regra específica do regime.

O fim da aposentadoria por tempo de contribuição e a elevação da idade mínima irá penalizar, mais fortemente, os trabalhadores mais pobres, pois esses não podem adiar a sua entrada no mercado de trabalho e terão de trabalhar por um número bem maior de anos. Somado a isso, também será ampliado o tempo mínimo de contribuição em 10 anos, passando dos atuais 15 para 25 anos, penalizando duplamente os mais pobres, que em geral estão em ocupações mais precárias, com maior informalidade e com maior rotatividade. Esses trabalhadores, terão dificuldade para cumprir os 25 anos de contribuição, mesmo que não deixem de trabalhar um ano sequer em suas vidas, e o benefício poderá se tornar inalcançável para alguns trabalhadores.

Outro ponto importante é a eliminação das diferenças entre homens e mulheres. Essa regra seria ótima se fosse combinada a outras igualdades entre homens e mulheres. Estudos recentes apontam que o percentual de homens que trabalhavam e participavam dos afazeres domésticos aumentou de 35,8% para 47,7%. No entanto, esse índice ainda é muito distante daquele que mede as mulheres com dupla jornada, que é de aproximadamente 90%. Mas essa desigualdade não se muda por canetada como as demais propostas aqui definidas.  

Para completar a reforma, chega-se à maldade maior: a desvinculação dos benefícios, como a pensão por morte e BPC (Benefício de Prestação Continuada), do salário mínimo, além de ampliar a idade de 65 para 70 anos no caso dos idosos. Novamente, culpam a população, argumentando que o fato de receberem o mesmo que os que contribuem para o regime de previdência estimula a não contribuição.

Depositam assim todo o problema da informalidade e da rotatividade no trabalhador, que é “oportunista”, e não nas características do mercado de trabalho brasileiro que impedem um período maior de contribuição.

Na previdência rural, direito adquirido plenamente apenas em 1988/1991, quando a população rural no Brasil já era muito inferior à urbana, a proposta de incluir a contribuição individual obrigatória mensal irá excluir diversos agricultores familiares. Essa proposta ignora o fato de que o sistema contributivo diferenciado foi moldado à realidade da atividade agrícola, sujeita à sazonalidade e a intempéries climáticas, por isso a contribuição incide sobre o que e quando produzem.

O sistema produtivo que temos hoje no Brasil e em quase todo o mundo é um sistema que gera desigualdade. A forma como os países encontraram para reduzir os efeitos dessa geração constante de desigualdade foi por meio da política fiscal. Cabe ao Estado adotar uma política que minimize os efeitos do sistema produtivo. A forma de fazer isso é redistribuindo a renda: arrecadando de uns e devolvendo para outros. A capacidade de arrecadar e de gastar determina a distribuição da renda nos países.

No Brasil, o que observamos é que o sistema tributário não contribui para a redução da desigualdade, pois todo o ganho de distribuição com impostos diretos, como imposto de renda, é perdido pela arrecadação indireta. A distorção do nosso sistema tributário decorre do fato de que quase 50% da base tributária é sobre bens e serviços, enquanto lucros e dividendos, que compõem grande parte da renda pessoal dos mais ricos, não são taxados. Portanto, todo o efeito distributivo ocorre pelos gastos públicos primários: transferências de renda às famílias, tais como previdência, benefício assistencial aos idosos e às pessoas com deficiência e o Bolsa Família e pelos serviços públicos gratuitos, como saúde e educação. São esses gastos que estão sendo atacados com as propostas apresentadas desde a PEC 55.

Os indicadores sociais no Brasil nos últimos anos tiveram uma trajetória excepcional: redução da mortalidade infantil, saída do Mapa da Fome, queda vertiginosa da pobreza e da extrema pobreza e queda do índice de gini, só para citar alguns. Esses indicadores refletiram políticas ativas, em especial aquelas associadas ao nosso sistema integrado de seguridade social, que combina saúde, assistência e previdência. Desmontar esse sistema, sob o pretexto de sua insolvência em meio a uma desaceleração econômica, fazendo todo o ajuste sobre a concessão dos benefícios, é penalizar a população quando se deveria discutir as renúncias, as isenções e desonerações fiscais, bem como a grande sonegação, ainda mais forte no setor rural. A proposta joga todo o ajuste para a população beneficiada por essas políticas e permite a redução do Estado brasileiro, eliminando de vez os mecanismos redistributivos presentes nas políticas públicas brasileiras desde a promulgação da Constituição de 1988.

A constitucionalização de medidas que levarão a cortes de gastos sociais e dos investimentos pelos próximos 10 anos, no mínimo, jamais terá a capacidade de recuperar o crescimento, ainda mais no atual quadro recessivo. Com isso, o quadro fiscal só irá se agravar, pois não haverá recuperação da arrecadação. E, como efeito colateral, teremos perdido a capacidade de distribuir renda na economia. Ainda que o bolo volte a crescer, uma coisa estará garantida, ele não será mais dividido.

Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil

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