Publicado no Outras Palavras em 18-6-2016
Em um contexto de greves, paralisações e manifestações a se alastrar pelos principais campi universitários de São Paulo, a sociedade paulista está chamada a debater e decidir, com urgência, qual modelo de universidade pública quer manter e oferecer para a atual e as futuras gerações. Há dois projetos em jogo.
Um deles significa aprimorar os mecanismos de financiamento e de gestão que, até hoje, garantiram que USP, Unesp e Unicamp conquistassem prestígio nacional e internacional, ofertando ensino superior gratuito e de qualidade, pesquisas científicas e tecnológicas de alto impacto e serviços de atendimento social e comunitário em áreas de saúde e educação básica, entre outras, como os do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, o Centrinho, da USP, e dos cursinhos pré-vestibular Principia, Primeiro de Maio e Ferradura, da Unesp, em Bauru, amplamente reconhecidos pela população.
O outro projeto em jogo significa o desmonte gradativo dessa estrutura — o que já está em curso, mediante uma sistemática defasagem nos recursos destinados pelo governo estadual ao custeio dos programas de ensino, pesquisa e extensão que, ao longo das últimas décadas, expandiram-se para garantir a formação profissional e ampliar as oportunidades de emprego e geração de renda para mais de um milhão de egressos de seus cursos de graduação e pós-graduação, além da construção de um patrimônio público inestimável dedicado à ciência e à tecnologia em mais de 30 campi em todas as regiões do estado.
Falta de professores, corte de bolsas, encerramento de projetos de extensão, desvinculação de hospitais universitários, sucateamento de laboratórios, prédios com manutenção deficiente e arrocho salarial são apenas algumas das faces mais visíveis desse desmonte. Em alguns casos, a situação chega às beiras do ridículo, com a falta de papel higiênico, sabonete e toalha de papel nos banheiros. Sem contar inúmeros serviços que só não estão sendo desmontados agora porque, a rigor, nunca chegaram a existir na forma e amplitude devidas, como moradias, refeitórios e transporte coletivo para estudantes de baixa renda.
Um argumento geralmente usado para apoiar o desmonte alega ser “injusto” usar o dinheiro público, que é de todos, para bancar ensino de excelência para “alguns privilegiados”. Considerada de relance, a tese parece ter sentido, mas é falsa, assim como a ideia de que o parque universitário paulista poderia ser gerido com “mais eficiência” se fosse vendido ou concedido à administração privada. Neste caso, mais ou menos pode ser apenas uma questão de perspectiva, já que uma gestão eficiente muitas vezes visa, prioritariamente, a ampliação das margens de lucro de quem explora a educação como um serviço particular, e não como um direito social — aliás, quem desdenha, geralmente, quer comprar.
Inúmeros estudos sobre desenvolvimento internacional provam que formar quadros qualificados e promover ciência e tecnologia de qualidade são investimentos que produzem efeitos benéficos a toda a sociedade, e não apenas aos indivíduos que conquistaram propriamente um diploma ou um título de pós-graduação. Em países ditos desenvolvidos, onde algumas universidades datam de muitos séculos, sobram exemplos de como a produção intelectual e a disseminação e a aplicação do conhecimento estão diretamente relacionadas com o avanço de indicadores socioeconômicos mais amplos — por exemplo, na produtividade do trabalho e na redução dos gastos com licenciamento e importação de tecnologias.
Mas se em poucos países, como os Estados Unidos, as melhores universidades são financiadas principalmente com dinheiro privado, via matrículas, doações e fundos empresariais de pesquisa (além, é claro, das encomendas tecnológicas de órgãos governamentais), é preciso reconhecer que países como o Brasil ainda não podem prescindir do papel do estado no fomento e no financiamento do ensino e da pesquisa de qualidade, haja vista o reduzido poder aquisitivo da maioria das famílias, a falta de estímulo tributário à filantropia e a obtusa cultura de distanciamento entre as atividades acadêmicas e o mundo corporativo daqui, que ainda prefere importar soluções a desenvolver e implementar inovação em parceria com a universidade.
Além disso, nos últimos anos, políticas afirmativas passaram a garantir um número expressivo de vagas a estudantes negros e de outras minorias étnicas ou oriundos de escolas públicas, minimizando uma distorção histórica que sempre imperou no acesso ao ensino superior no Brasil. Se é verdade que, em cursos como o de medicina (um exemplo clássico, mas enganoso, devido à sua especificidade), filhos da elite ainda ocupam a maioria das vagas gratuitas, não é menos certo afirmar que, na maioria dos cursos universitários públicos, atualmente, o cenário demográfico é outro, e sobretudo na Unesp, onde o avanço dessas políticas se dá de modo mais acelerado, ainda que não sem contradições.
Por fim, a pauta salarial dos professores e servidores técnico-administrativos, que entraram novamente em greve no início do mês, em diversos campi paulistas, é um item importante e que também deveria preocupar quem, estando fora dos círculos acadêmicos, ainda defende um modelo de excelência para essas universidades. Afinal, o achatamento gradativo das remunerações vai, aos poucos, afastando os melhores talentos do ensino público, fazendo com que se percam décadas de investimento na formação e qualificação de recursos humanos de nível superior. Em alguns departamentos, a fuga de cérebros já começou e, sem recomposição dos salários, irá se agravar.
Ainda assim, acredito ser possível que docentes e servidores relativizassem o impacto de suas perdas salariais caso vislumbrassem um projeto estratégico mais amplo, que lhes devolvesse uma perspectiva de desenvolvimento profissional e de melhoria da qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão que são, por dever de ofício, mas sobretudo por vocação, obrigados a ofertar. Por isso, o atual movimento de greve não é apenas pela reposição da inflação no valor dos salários e sim, principalmente, em defesa da universidade pública de excelência e gratuita em benefício da comunidade, com vasto apoio entre estudantes e outros setores sociais.
Aperfeiçoar e corrigir aspectos do atual modelo de gestão e financiamento das universidades públicas do estado de São Paulo, bem como dotá-lo de maior transparência no modo como aplica seus recursos é certamente necessário, e isso deve ser debatido de forma ampla e participativa pela sociedade paulista e suas lideranças políticas. E a hora é agora. Mas usar essas supostas distorções para justificar um desmonte ou mesmo a privatização desses serviços e desse patrimônio só pode ser obra de uma política que esteja francamente a favor do atraso científico, tecnológico e educacional do estado. Ou, pura e simplesmente, de sua inação.
Crédito da foto: ABr
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