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Para entender a Venezuela

Não é possível entender a atual crise da Venezuela e tampouco o regime chavista sem compreender como era esse país antes da “revolução bolivariana” e qual o seu significado geopolítico para os EUA. A Venezuela tem a maior reserva provada de petróleo do mundo. São 298,3 bilhões de barris, ou 17,5% de todo o petróleo mundial, localizado a apenas 4 ou 5 dias de navio das grandes refinarias do Texas.

O petróleo do Oriente Médio, em comparação, está entre 35 a 40 dias de navio dos EUA, maior consumidor de óleo do planeta.

Essas imensas reservas começaram a ser exploradas no governo de Juan Vicente Gómez (1908-1935) e a renda gerada pela produção e exportação de hidrocarbonetos possibilitou a construção de infraestrutura viária e portuária e a implantação de um aparelho de Estado centralizado. A consolidação do Estado Nacional venezuelano embasou-se apenas na exportação de petróleo para o mercado norte-americano, o que levou à Venezuela a desenvolver “relações privilegiadas” com os EUA.

Na década de 1950 do século passado, a Venezuela já havia se convertido no segundo produtor e no primeiro exportador mundial de petróleo. No entanto, essa notável afluência econômica, obtida numa relação de estreita dependência com os EUA, não se refletia na diminuição de suas graves desigualdades sociais, na diversificação de sua estrutura produtiva e na implantação de um regime democrático estável.

O país era marcado por profunda dependência em sua política externa, o que resultou em um sistema político formalmente democrático, porém profundamente oligárquico, em uma política externa avessa à integração regional e à articulação com outros países periféricos e a uma estrutura social marcada pela desigualdade e a pobreza.

O isolacionismo dependente da Venezuela só começou a ser parcialmente revisto ao final da década de 1980, quando a relativa abundância de petróleo no mercado internacional, que fez diminuir o preço dessa commodity, somada à crise da dívida, que viria a atingir aquele país ao final do decênio, produziu uma modesta mudança na estratégia de sua política externa. Ela passou a buscar progressivamente a inserção no cenário externo mais realista, na qual o Caribe e a América do Sul passaram a ter lugar de destaque.

Contudo, mesmo com essa mudança modesta e parcial, a Venezuela continuou a orbitar em torno dos interesses estratégicos do EUA na região, constituindo-se, junto com a Colômbia, no seu aliado mais fiel.

Antes do governo de Chávez, em 1998, o país com a maior reserva de óleo do mundo tinha 70% de sua população abaixo da linha da pobreza, 40% na pobreza extrema e 21% da população estavam subnutridos. Essa era a Venezuela dos Capriles, dos López e da “oposição democrática”.

Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a mortalidade infantil era de 25 por mil, em 1990, quase o dobro da brasileira de hoje (13,8 por mil). Em relação à educação, apenas 70% das crianças concluía o ensino primário e o acesso às universidades era restrito às elites e à pequena classe média. A maioria dos idosos não contava com aposentadoria e simplesmente vivia à míngua. Desse modo, a Venezuela chegava ao fim do século XX com uma contradição gritante e insustentável: apesar das grandes riquezas derivadas da exportação de petróleo, o país convivia com problemas sociais muito graves.

Embora o chavismo não tenha alterado, de forma significativa, a estrutura produtiva da Venezuela, que permaneceu estreitamente dependente das exportações do petróleo, Chávez implodiu as arcaicas estruturas sociais e políticas da Venezuela, bem como a política externa de alinhamento automático aos EUA.

A desigualdade, medida pelo índice de Gini, foi reduzida em 54%. A pobreza despencou de 70,8%, em 1996, para 21%, em 2010, e a extrema pobreza caiu de 40%, em 1996, para 7,3%, em 2010.

O chavismo implantou as chamadas misiones, projetos sociais diversificados e amplos que beneficiam cerca de 20 milhões de pessoas, e passou a criar um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social na Venezuela. Hoje, 2,1 milhões de idosos recebem pensão ou aposentadoria, ou seja, 66% da população da chamada terceira idade.

Na Venezuela pós-chavismo, a desnutrição é de apenas 5%, e a desnutrição infantil 2,9%. Após o chavismo, a Venezuela tornou-se o segundo país da América Latina (o primeiro é Cuba) e o quinto no mundo com maior proporção de estudantes universitários.

Em relação à saúde pública, é preciso ressaltar que a mortalidade infantil diminuiu de 25 por mil, em 1990, para apenas 13 por 1000, em 2010. Atualmente, 96% da população já tem acesso à água potável. Em 1998, havia 18 médicos por 10.000 habitantes, atualmente são 58. Barrio Adentro, o programa de atenção primária à saúde que recebe a ajuda de mais de 8.300 médicos cubanos, salvou cerca de 1,4 milhão de vidas. Chávez deu início também a um ambicioso programa de habitações populares, proporcionalmente o maior da América Latina.

No campo da política externa, Chávez rompeu com o paradigma anterior de país periférico e dependente e investiu na integração regional e no eixo estratégico da geoeconomia e geopolítica Sul-Sul, com destaque para as relações bilaterais com o Brasil, o que acabou conduzindo à adesão da Venezuela como membro pleno do Mercosul, algo que nos beneficia muito.

A Venezuela chavista tornou-se uma grande parceira do Brasil, comprando vorazmente nossos produtos e recompensando-nos com elevados superávits comerciais e com forte apoio político à integração do nosso subcontinente. Chávez era, sobretudo, um grande amigo do Brasil.

Ademais, Chávez estabeleceu relações próximas com Rússia, China e Cuba e passou a apoiar experiências políticas que divergiam da ordem mundial dominada pelos interesses dos EUA. Em contraste com o isolacionismo anterior, Chávez fundou a ALBA e criou a Petrocaribe, objetivando fornecer petróleo a preços convidativos para os países daquela região. Isso explica porque a OEA, apesar dos esforços febris dos EUA e do Brasil, não consegue aprovar uma resolução forte contra o governo de Maduro.

Mas o principal mérito do chavismo foi ter implodido o pacto que mantinha as oligarquias venezuelanas se alternando no poder, sem dar espaço a novos partidos. Mas foi além e organizou e mobilizou as massas destituídas, bem como passou a dominar setores importantes do aparelho de Estado, como as forças armadas e o poder judiciário.

Isso acabou privando as oligarquias venezuelanas de seus principais instrumentos de intervenção política.  São esses fatores que ajudam a explicar a radicalidade do atual processo político venezuelano.

A reação

Como todos sabem, a reação das oligarquias ao chavismo não tardou. Além do conhecido golpe de 2002, que quase resultou na execução de Chávez, houve também o processo conhecido como “paro petrolero”, a suspensão das atividades da PDVSA, a estatal do petróleo da Venezuela. A suspensão das atividades da PDVSA, controlada então pelas oligarquias venezuelanas, resultou numa contração do PIB de 18%, entre 2002 e 2003, inflação, carestia de produtos básicos, desemprego, aumento do risco país etc.

No país com a maior reserva de petróleo do mundo, houve até falta de gasolina.  O governo brasileiro, ao final de 2002, enviou navio tanque com gasolina para suprir parcialmente a carência de combustíveis na Venezuela.

O “paro petrolero” forçou o chavismo a intervir na PDVSA, dominando-a, assim como o golpe de 2002 forçou o chavismo a controlar mais fortemente as forças armadas.

É eloquente a falta de compromisso real das oposições venezuelanas, como López, Capriles e Ledezma, com a democracia. O “paro petrolero”, em particular, evidencia que tais oligarquias não têm pruridos em arruinar a economia do país, desde que isso signifique uma oportunidade para voltar a controlar o poder perdido.

A situação da Venezuela atual é muito próxima da existente no período 2002-2003. A vitória de Maduro sobre Capriles, ainda que por pequena margem, frustrou as expectativas da oposição. Pouco tempo depois, os setores mais radicalizados, liderados por Leopoldo López, iniciaram o processo denominado de “la salida”, a utilização de manifestações violentas de rua, com a formação de barricadas, as chamadas “guarimbas”, incêndio de edifícios públicos e até mesmo de atos terroristas com o intuito de derrubar o governo eleito.

Entre 2013 e 2016, esse processo político radicalizado pela oposição de direita acabou provocando a morte de pelos menos 46 pessoas, a maioria chavistas ou de pessoas sem afiliação política, bem como danos milionários a equipamentos públicos.

Tais “guarimbas” foram e são financiadas desde o exterior. Com efeito, há uma conexão clara da direita venezuelana, particularmente dos setores ligados a Leopoldo López, com a extrema direita da Colômbia, principalmente com Álvaro Uribe e seus grupos de extermínio. São essas conexões e os reiterados atos de violência que levaram à prisão de López e Antonio Ledezma na Venezuela.

Caracterizá-los como presos políticos que tivessem cometido “crimes de consciência”, como faz a imprensa brasileira, é desconhecer a realidade de uma direita que não tem, de fato, qualquer compromisso com a democracia e os direitos humanos e que aposta sistematicamente na violência como arma política preferencial.

Concomitantemente, foi iniciado um processo econômico que visa a produzir carestia, desabastecimento e inflação, tal como ocorreu, por exemplo, no Chile de Allende ou mesmo na própria Venezuela dos anos 2002 e 2003. Em parte, como resultado e a economia venezuelana ser ainda muito dependente das exportações do petróleo e com agricultura e indústria débeis.

Mas há também uma guerra econômica em curso que utiliza: 1) o desabastecimento programado de bens essenciais; 2) a inflação induzida; 3) o boicote a bens de primeira necessidade; 4) o embargo comercial disfarçado; e 5) o bloqueio financeiro internacional.

Essa guerra vem ajudando a radicalizar ainda mais o processo político venezuelano. Nos últimos 4 meses, morreram mais de 100 pessoas nos conflito de ruas. Houve linchamentos de chavistas, inclusive de um que foi queimado vivo, atentados terroristas, incêndios de prédios públicos, inclusive de uma maternidade. Houve também, é claro, a morte de manifestantes da oposição pelas forças de segurança. A violência se generalizou.

O governo chavista optou pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, prontamente rejeitada pela oposição, que logo alegou ser inconstitucional e que visava a perpetuar o poder de Maduro.

Em primeiro lugar, tal convocação não é inconstitucional. A convocação da Assembleia Constituinte pelo presidente da república está prevista clara e explicitamente no artigo 348 da Constituição da Venezuela. Em segundo, a Constituinte não substitui a Asamblea Nacional (o parlamento unicameral da Venezuela), como foi afirmado falsamente, a qual continuará a funcionar e a cumprir suas funções legislativas.

Em terceiro lugar, a convocação de assembleias constituintes é um mecanismo frequentemente usado em países democráticos como solução pacífica para impasses políticos e institucionais como o que acomete a Venezuela atual.

Em quarto lugar, a convocação teve apoio expressivo da população. O número de votantes para a assembleia (mais de 8 milhões) foi superior aos votos que teriam sido obtidos pelo plebiscito informal que a oposição convocou uma semana antes contra a assembleia (cerca de 7,2 milhões de votos). Observe-se que esse plebiscito é que foi, sim, inteiramente ilegal. Não fosse o clima de violência criado pela oposição, as barricadas que impediram o acesso aos centros de votação e o boicote ostensivo das empresas de transporte, que fizeram locaute no dia da votação, a participação eleitoral poderia ter sido bem superior.

Em quinto lugar, os objetivos estratégicos da Assembleia Constituinte são bem mais amplos do que o suposto desejo de perpetuar Maduro no poder. A Assembleia visa essencialmente a constitucionalizar as misiones sociais, bem como estabelecer as bases jurídicas e institucionais de uma economia pós-petroleira. A preocupação fundamental é impedir retrocessos sociais, como os que ocorrem atualmente no Brasil, e criar mecanismos econômicos que levem a Venezuela a ampliar a base produtiva de sua economia. Há de se enfatizar, além disso, que o texto que sairá dessa Assembleia só terá valor jurídico se for aprovado pela população em referendo.

Assim sendo, caracterizar a convocação da Assembleia Constituinte como um “golpe” ou uma “ruptura da ordem democrática” é algo de evidente má-fé. Pode-se não concordar com tal convocação, mas não se pode denominá-la de “golpe”. Golpe foi que aconteceu no Brasil. A alternativa à Constituinte parece ser uma guerra civil aberta. Ao menos, a Constituinte cria uma oportunidade para que se estabeleça um diálogo que supere o atual impasse político e institucional daquele país.

Leia a íntegra desse artigo: Para Entender a Venezuela

Crédito da foto da página inicial: Cristian Hernández/EFE (publicado na Agência Brasil)

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