De certo modo, este artigo é uma volta a um tema que se repete porque não se resolve. Um desses repiques tratei em artigo anterior aqui no Brasil Debate. Se não viu o filme Os Companheiros (1963), de Mario Monicelli, estrelado por Marcello Mastroianni, veja. Região industrial do norte da Itália, final do século 19. Um povoado, na periferia de Turim, que vive em torno de uma grande tecelagem. Naquele cenário histórico, tudo o que mantém a vida da classe trabalhadora vem do que arranca do patrão. Roupas e calçados, alimentos, velas para iluminação e carvão para cozinhar e aquecer a moradia, remédios e os poucos materiais escolares que formarão os “proletinhas” que irão substituir os adultos.
E o que é o Estado, nesse quadro? Aparece quando se dá um conflito: cercam a fábrica e espancam os operários. No começo do século 20, Lenin, o vermelho, sintetizava: o Estado é uma coleção de prisões e tribunais, polícia e exército, repressão de uma classe sobre a outra. De outro lado da barricada, o liberal Max Weber concordava: o Estado é monopólio do uso legitimado da coerção física. Serviços públicos? Quase nada. Porrete era o gasto dominante. Os governos, nos países avançados recolhiam pouco imposto, bem abaixo dos 10% do PIB. Imposto na alfândega, alguns sobre comércio (tabaco, sal). O nosso conhecido imposto progressivo sobre a renda foi uma invenção do final da Primeira Guerra – engatinhou durante algum tempo e cresceu ao longo do século 20.
Dê um salto no tempo. O que é hoje a cesta de consumo necessária à manutenção e reprodução da força de trabalho, nos países centrais e, mesmo, nos periféricos integrados ao moinho capitalista? Metade dos bens e serviços essenciais, pode-se dizer, é obtida por outros meios que não o dispêndio do salário. É comprada indiretamente, de modo menos visível, através de outra relação, que não a patrão-empregador.
Cidadão-Estado–serviços públicos (como educação e saúde) e serviços de utilidade pública (energia, água e esgoto, coleta de lixo, moradia). E alguns bens comprados no mercado e na feira são regulados pelo Estado. Alguns, ainda, subsidiados pelo Estado. Carga tributária? Nos Estados Unidos, tradicionalmente avesso a taxas, perto de 30%. Na Europa Ocidental, em torno dos 50%. No Brasil, quase 40% (sobre a economia formalizada, bem entendido).
Pois bem, como se vê no filme de Monicelli, o instrumento de organização e formação de ideias, no confronto operário, é algo que chamamos de sindicato. Para negociar o pagamento que garantirá a compra da vida, no dia seguinte, na semana seguinte. E no novo cenário? O sindicato continua sendo relevante para lutar pela metade dessa vida – aquela que depende da negociação salarial. E a outra metade? Ela é mediada por outro tipo de organização – menos formalizada, frequentemente ocasional e flutuante. Os movimentos sociais – movimentos que reivindicam água, luz, uma linha de ônibus, posto de saúde, escola. E as mobilizações de protesto aleatórias – como os motins do pão, da água, das tarifas e preços de serviços de utilidade pública. Um outro tipo de confronto e outro tipo de “negociação”, quando há alguma.
Dada a importância desse universo de conflitos e seus efeitos psicossociais, ideológicos e políticos, os sindicatos convencionais precisam prestar atenção nesses movimentos, alguns novos, outros nem tanto. O sindicatos talvez precisem tratá-los como irmãos menores. E, em alguma medida, como seus sucessores, seus herdeiros organizativos. Pelo menos para algumas categorias de trabalhadores fragmentados e para alguns tipos de lutas. Precisam ajudá-los a crescer. Investir neles. Materialmente.
A forma de organização desses movimentos não se faz em uma ou poucas sedes nas cidades, em assembleias periódicas realizadas em torno de datas de celebração de contratos coletivos. A atividade convencional dos sindicatos é essencial – e para algumas categorias é simplesmente vital. Mas os movimentos sociais voltados para o “salário indireto” dos serviços públicos e serviços de utilidade pública? Eles são e provavelmente continuarão a ser descentralizados, tendo como referência principal os locais de moradia, congregando indivíduos e famílias de diferentes ocupações, mas com muitas identidades de destino e vida.
Aqui vai uma dica que talvez valha a pena – para o leitor, em geral, mas sobretudo para os ativistas da área: dar uma olhada no que fez a central sindical americana, a AFL-CIO. Deu-se conta de que perdia bases com a desindustrialização, o deslocamento das plantas, a fragmentação das categorias. E com o crescimento da massa de trabalhadores (imigrantes, principalmente) em setores de serviços de baixa formalização e difícil sindicalização. Criou um movimento-comunidade, organizado a partir dos locais de moradia, uma ferramenta especial para enfrentar o novo desafio. Pode não ser uma iniciativa para “copiar”, nem a única a imaginar, por certo. Mas é bem sugestiva. Veja o site para ter uma ideia da coisa: https://www.workingamerica.org/about.
Como dissemos, temos que botar a cabeça para funcionar. Não serve apenas para usar chapéu. Sindicalistas, ativistas sociais e políticos, vamos olhar para os movimentos quase invisíveis, mas muito efetivos, da sociedade em transformação. Já estamos atrasados.
Crédito da foto da página inicial: “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé /Divulgação
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