O debate sobre a espinhosa questão do ajuste fiscal está um tanto dogmático.
De um lado, os partidários da ortodoxia afirmam que ajustes desse tipo são as vias necessárias que conduzem inexoravelmente economias em crise ao paraíso da estabilidade monetária com crescimento e geração de emprego.
De outro, há heterodoxos que condenam quaisquer ajustes dessa natureza, sob o argumento de que eles invariavelmente conduzem as economias ao inferno da recessão e do desemprego.
Esse maniqueísmo, simplista como todo maniqueísmo, oculta do debate público sobre o assunto a complexidade envolvida no tema.
Na realidade, as evidências empíricas mostram que os resultados dos ajustes fiscais podem ser muito diferentes, a depender de uma série de fatores, que vão desde as medidas adotadas até o quadro econômico internacional, passando pelas condições gerais da economia objeto do ajuste e por fatores políticos importantes.
Exemplos de trágicos fracassos não faltam.
As experiências de ajustes ortodoxos, combinados com políticas de natureza neoliberal, foram, em geral, muito ruins na América Latina dos anos 80 e 90. Embora com êxito no controle da hiperinflação, elas produziram quadro de estagnação econômica, destruição de setores produtivos, desemprego e aumento da pobreza e das desigualdades, o que gerou guinada política à esquerda em boa parte da região.
As medidas de austeridade impostas atualmente pela Troika a países como Grécia e Espanha também são retumbante fracasso. No caso do primeiro país, o austericídio resultou não só numa imensa regressão social, mas na própria impossibilidade de a Grécia conseguir pagar a dívida.
Contudo, temos, em contrapartida, alguns exemplos de ajustes que foram, em linhas gerais, benéficos.
Ao final de 2002, o Brasil, com economia extremamente vulnerável a choques externos, sofreu forte ataque especulativo. A inflação fechou aquele ano em 12,5%, a dívida em relação ao PIB alcançou mais de 60%, as taxas de juros chegaram a estratosféricos 25% ao ano, o desemprego aumentou para mais de 12%, as reservas se reduziram a US$ 38 bilhões e o chamado risco país superou os 2.400 pontos. O País estava em franco estado pré-falimentar.
Nessas circunstâncias muito delicadas, o governo do PT teve de fazer forte ajuste fiscal, de modo a evitar debacle econômica de consequências imprevisíveis. Na época, alguns criticaram essa suposta reviravolta ideológica do partido, afirmando que o PT havia sucumbido à hegemonia do pensamento neoliberal.
Na realidade, tal ajuste não foi uma capitulação ideológica, mas sim recuo tático de curto prazo feito com a finalidade de preservar o objetivo estratégico de médio e longo prazo: iniciar um novo ciclo de desenvolvimento que combinasse crescimento econômico com eliminação da pobreza e redução das desigualdades sociais.
E isso foi feito.
Porém, ajustes sempre têm riscos. Há, é claro, os riscos econômicos. Ao encolher a demanda do setor público, eles tendem a ser recessivos. Se a retração da demanda do setor público não for compensada, num momento posterior, pelo investimento do setor privado e/ou pelas exportações, ocorre o sério risco de haver recessão significativa e prolongada, o que pode levar ao aumento dos déficits e das dívidas pelo encolhimento das receitas. Tal risco aumenta em um cenário de juros elevados e crescentes.
Há também os riscos políticos. Ajustes impõem sacrifícios. Portanto, sua viabilidade depende de condições políticas específicas. Em primeiro lugar, eles funcionam melhor quando há transparência e negociação das medidas propostas. Em segundo lugar, os ajustes têm maior probabilidade de ter êxito se os sacrifícios forem bem distribuídos.
Medidas que afetam, sobretudo, os assalariados e os que dependem da seguridade social, mas que preservam credores, sistema financeiro e o grande capital, se constituem numa receita para a regressão social e o fracasso político. Em terceiro lugar, os ajustes tendem a se tornar mais exitosos em ambiente de estabilidade política e cooperação suprapartidária.
Assim, antes de se proceder ao ajuste, é necessário indagar se seus riscos inerentes são menores que o risco de não fazer ajuste nenhum.
Esse parece ser o caso do presente ajuste.
Ao contrário do que acontecia nas crises periféricas da década de 1990, quando o Brasil submergia na insolvência financeira e tinha de recorrer invariavelmente ao FMI, o País suportou bem, até agora, os impactos externos da nova crise mundial.
Entretanto, a continuidade da crise, que já entrou em seu 8º ano, a estagnação do comércio internacional, o decréscimo dos preços das commodities e, mais recentemente, o impacto da crise hídrica sobre o custo da energia, colocaram um limite incontornável à nossa capacidade de absorver indefinidamente os choques da crise.
O Brasil não tem mais como persistir em medidas expansionistas sem agravar desequilíbrios financeiros que tendem a comprometer, em médio prazo, a continuidade do desenvolvimento econômico e social do País.
Como em 2003, trata-se de recuo tático de curto prazo efetuado para preservar objetivos estratégicos de longo prazo.
Pois bem, em relação à probabilidade de êxito do ajuste proposto, há uma notícia boa e uma notícia péssima.
A notícia boa é a de que a situação econômica do Brasil de hoje é muito melhor que a de 2002. A inflação está em torno de 6%, a relação dívida/PIB está em confortáveis 35%, as reservas somam US$ 374 bilhões, e o desemprego mal alcança os 5%. Tal situação substancialmente melhor permite, em tese, a realização de ajuste com impactos reduzidos sobre a população, sem atropelar direitos e promover retrocessos.
A notícia péssima tange ao golpismo desbragado de boa parte da oposição e da mídia. A oposição e seu candidato derrotado resolveram apostar irresponsavelmente na instabilidade política e num possível impeachment a la Paraguai.
Nesse cenário, o risco político do ajuste se torna muito alto. Ironicamente, é a oposição conservadora, a qual teria feito ajuste muito mais drástico e regressivo, caso tivesse chegado ao poder, que representa o principal empecilho para o reequilíbrio das contas públicas.
Mas o risco do golpismo não se restringe ao ajuste, ele representa clara ameaça à democracia. Caso se insista na aventura irresponsável, o resultado poderá ser a “venezuelização” do processo político brasileiro.
Nesse caso, não haverá ajuste que dê jeito.
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