Publicado na Carta Capital em 14-3-2016
Crédito: Paulo Whitaker/Reuters
Quem é Sergio Moro? Não há brasileiro que não saiba dele e da sua determinação ao alimentar diuturnamente a crise de um país abandonado ao seu destino, privado de Instituições e Estado de Direito.
Juiz de primeira instância e da província imperiosamente postado na origem dos nossos tormentos, apreensões e incertezas, primeiro motor do marasmo em plena expansão, partícula primeva do big-bang que não se aquieta.
Há quem enxergue em Sergio Moro alguém entregue à missão redentora, capaz de seguir Pedro, o Eremita, a caminho da Terra Santa para arrancar o sepulcro de Cristo das mãos infiéis. Versão sedutora de uma personalidade complexa.
Melhor, de todo modo, ir além de interpretações e suposições. Um texto que Moro escreveu ao zarpar na rota da Lava Jato é muito indicativo dos seus propósitos, bem como das suas quimeras.
Trata-se de um estudo, de indisfarçável pretensão acadêmica, da Operação Mani Pulite, que, na Itália dos primeiros anos 90, implodiu a Primeira República nascida no imediato pós-Guerra com o fim da ditadura fascista. Leitura instrutiva para entender e dimensionar a desmedida ambição de quem escreve, a par da ignorância envolta em empáfia provinciana.
Para se atirar ao trabalho intitulado “Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, seria recomendável o perfeito conhecimento da história dos últimos 70 anos. Moro não está equipado para tanto. Valem de saída dois exemplos para expor a ousadia, ou a desfaçatez, de quem orgulhosamente se engana.
Primeiro exemplo. Moro entende que os vazamentos seletivos das ações da Lava Jato contribuem de forma decisiva para o êxito da sua operação, e escreve: “Os responsáveis pela Operação Mani Pulite fizeram largo uso da imprensa (…) os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva (…) importante garantir o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados”.
Vazamentos destinam-se, obviamente, à mídia, no caso da Lava Jato, a nativa. Donde a mídia do pensamento único, porta-voz da minoria, transformada em partido de oposição. A mídia italiana tem outro endereço.
A Itália está longe de ser um país perfeito, mas suas instituições funcionam a contento e o Estado Democrático de Direito está em vigor. O jornalismo ali existe para todos os gostos e tendências. Vai-se do L’Unità, fundado por Antonio Gramsci, ao Il Giornale de Silvio Berlusconi.
Do Osservatore Romano, órgão do Vaticano, ao Il Manifesto, declaradamente de esquerda. Do Corriere della Sera, moderado e conservador, ao La Repubblica, de centro-esquerda. E há de se levar em conta que no início da década de 90 ainda sobrevivia uma imprensa partidária.
Vazamentos houve durante a Mani Pulite, e certamente contribuíram para manter acesa a atenção da opinião pública. Ofereceram-se, porém, aos mais diversos relatos, interpretações, comentários. Não era objetivo tanto de Mani Pulite quanto da mídia peninsular organizar um golpe de Estado.
Segundo exemplo. Moro refere-se a um instituto do Direito italiano, o avviso di garanzia, espécie de intimação entregue ao indagado com a devida antecedência para informá-lo que uma investigação está em curso a seu respeito e que ainda será chamado a depor. Um ditado italiano diz de alguém em má-fé: prega bem e cisca mal. Não consta que Lula tenha recebido em tempo útil algo similar ao avviso di garanzia.
Pelo contrário, é preciso dizer que Moro foi admiravelmente atendido pela polícia para montar um show carnavalesco que envergonha o País aos olhos do mundo e exibe, ao cabo, a ausência de uma Suprema Corte pronta a impor o império da lei.
Duzentos policiais, armados até com metralhadoras, invadiram às 6 da manhã de sexta-feira 4 a residência do ex-presidente da República e o Instituto Lula, e não surpreende que as reportagens dos jornalões tivessem chegado aos locais meia hora antes enquanto o helicóptero da Globo sobrevoava a área. Nada de espanto, de todos os pontos de vista: o complô é midiático-policial, e Moro aí está para atiçar o fogo.
Um ministro do STF apenas pronunciou as palavras certas, Marco Aurélio Mello. Sabidamente, ele não simpatiza com o PT, mas soube arcar com o papel que compete ao magistrado. No mais, retoque-se o ditado: aos amigos tudo, aos inimigos nem mesmo a lei.
O poder corrompe, a fama também. Ao longo da Lava Jato, Moro empolgou-se e engajou-se em uma operação bem maior do que a própria sob seu comando. Sempre que não estivesse engajado de saída. Endeusado pelos golpistas, santificado em todas as instâncias midiáticas, Moro tripudia a se valer da insensatez geral, nutrida pela crença de que a verdade é aquela que nos convém.
Desconfio que Moro não conheça a língua dos seus ancestrais, o que não é pecado. Mas o juiz é patético ao apontar como única fonte de informação a respeito da Mani Pulite um livro de autores quase desconhecidos publicado em inglês por uma editora nova-iorquina.
Sobre o assunto, existe uma bibliografia monumental à disposição de quem pretender uma análise profunda. Mesmo assim, um bom começo seria ler Mani Pulite – La Vera Storia, de Gianni Barbacetto, e algo mais sobre a estrutura da Justiça italiana e sobre as tradições dos partidos. Para evitar afirmar que a Democracia-Cristã se perfilava à direita.
Tratava-se, isto sim, de um partido grande demais no poder por tempo excessivo. Nela se digladiavam correntes opostas. Uma de direita, liderada, entre outros, por Giulio Andreotti, sete vezes primeiro-ministro, fidelíssimo aos Estados Unidos, outra de esquerda, encabeçada por Aldo Moro.
Nas eleições de 1976, a DC obteve 36% dos votos e o Partido do Comunista 34%. Neste momento, fortaleceu-se a ideia do compromesso storico, aliança entre democrata-cristãos e comunistas, esposada por Moro e Enrico Berlinguer.
Setenta foi a década do terrorismo de direita e de esquerda, preto e vermelho, cujas atividades criminosas atingiram o pico da violência e da notoriedade, uns com o atentado da estação de Bolonha (80 mortos, centenas de feridos), outros como o sequestro e o assassínio de Aldo Moro.
As Brigate Rosse, que o mataram, haviam sido infiltradas pela CIA para o cumprimento de uma missão do agrado dos EUA e da direita DC, apavorados pela perspectiva do compromesso storico.
Ao contrário do que se lê no texto de Sergio Moro, a DC não desapareceu em bloco do mapa político italiano. Muitos da ala esquerda cresceram na aliança com os ex-comunistas reunidos em um partido que mudou de nome ao longo do tempo e hoje se chama Democrático para liderar a coligação governista.
Desde o fim da Mani Pulite, desta corrente progressista da antiga DC saíram um presidente da República, Oscar Luigi Scalfaro, Romano Prodi, premier duas vezes, e mais um premier, Enrico Letta, anterior ao atual, Matteo Renzi, formado na juventude democrática cristã.
O Partido Comunista, ignorado por Moro, emergiu incólume da Mani Pulite. Indiciado um somente entre seus militantes e preso por quatro meses, teve de ser solto com direito a um pedido de desculpas.
O ex-comunista Massimo D’Alema ocupou a cadeira de premier e Giorgio Napolitano foi presidente da República, único a ser reeleito depois de sete anos de mandato em toda a história republicana.
Quanto ao Partido Socialista, manteve a sua tradição de esquerda por longo tempo, até se dispor a uma aliança com a DC e protagonizar um enredo de sabor tucano sob a liderança de Bettino Craxi, enfim condenado pela Mani Pulite e obrigado ao exílio para evitar a prisão.
De alguma forma, o compromesso storico se concretiza no atual governo de Matteo Renzi, sem a dimensão e o impacto que certamente teria se tivesse surgido do acordo entre Moro e Berlinguer.
É imaginável que Sergio Moro sonhe em se tornar o Antonio Di Pietro brasileiro. O promotor Di Pietro ganhou popularidade por ter dado voz de prisão ao primeiro indiciado da Mani Pulite, um certo Chiesa, de fato um mariuolo, em linguagem mafiosa personagem secundária, de pouca monta.
Di Pietro não deixou de ter papel relevante, embora a qualidade da operação residisse na força-tarefa, o pool, integrada por promotores de altíssimo nível e chefiada pelo procurador da República de Milão, Saverio Borrelli, magistrado de estatura mundial.
Igual a Moro, Di Pietro não carecia de ambições. Foi ele o único dos promotores da operação a enveredar pela carreira política e fundar um partido, Italia Dei Valori, com algum êxito de início. Hoje também Di Pietro tornou-se personagem de pouca monta.
Moro não participaria da Mani Pulite por pertencer ao poder judicante, que a Justiça italiana exclui da fase de investigação e indiciamento. Entre as inúmeras informações erradas que Moro transmite no seu trabalho, uma, clamorosa, ao dizer que Giulio Andreotti foi absolvido.
Colocado no banco dos réus pela Mani Pulite, foi condenado nas três instâncias e só não tomou o rumo do cárcere ao cabo do percurso judiciário por causa da idade avançada, a lhe alongar a vida para encurtar a prescrição da pena.
Está claro que o escândalo da Petrobras não foi inventado e é bom que os corruptos sejam exemplarmente punidos. Ofende os espíritos democráticos, entretanto, e exibe a precariedade e o descalabro da situação, a omissão a respeito das falcatruas anteriores, cometidas às claras, inclusive na própria Petrobras, pelo governo tucano, com seu socialismo democrático da fancaria que tanto apraz à casa-grande.
De todo modo, a Mani Pulite jamais promoveu o show da truculência encenado pela Polícia Federal na sexta-feira 4, entre São Bernardo do Campo e as alturas do Ipiranga. Programa tão bem preparado, esmerilhado nos detalhes infinitesimais e enfim levado a cabo na exasperação magistral de uma violência adequada à caça de um Dillinger ou de um Bin Laden, faria empalidecer os melhores diretores dos musicais da Broadway.
Espetáculo similar só é possível em um país tão peculiar quanto único, ainda a viver uma Idade Média, onde o juiz Moro, os promotores curitibanos, a polícia e a mídia desconhecem a diferença entre duas figuras contempladas pela lei: o suspeito e o indiciado. Lula é apenas e tão somente suspeito, de mais a mais por suspeitas até agora sem a menor consistência.
Como suspeito, só poderia ser convidado a depor sem aparato coercitivo, sem ameaça e sem prepotência. Isto é do conhecimento até do mundo mineral, conquanto nem todos na Justiça, na polícia, no jornalismo, na política e no público em geral tenham a sensibilidade do quartzo e do feldspato.
As considerações de Sergio Moro sobre Mani Pulite exibem uma personalidade pueril antes ainda que provinciana. Estamos diante de um impecável rebento destes anos de redemocratização (?) fajuta, de decadência cultural, de arrogância inaudita, de insensatez avassaladora. E comparar a Lava Jato à Mani Pulite é apenas ridículo.
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