Publicado no site do Instituto Humanitas Unisinos em 15-3-2016
Crédito: João Valadares/Correio Braziliense
“O uniforme tem papel simbólico relevante na medida em que hierarquiza as relações. A roupa define o lugar de cada indivíduo, deixa claro quem manda e quem obedece, quem paga e quem recebe, quem dá direitos e quem tem deveres”.
O comentário é de Jelson Oliveira, professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR, em artigo no blog com Jota, 14-03-2016.
Segundo ele, “Brasil só é ‘pacífico’ porque aqui, pobres, negros e outros indesejados, sabem o seu lugar. O uniforme, por isso, continua indispensável.”
Eis o artigo.
A foto de João Valadares, do Correio Braziliense, viralizou esse final de semana nas redes sociais. A imagem não deixa de ser emblemática. De um lado, um casal de classe média alta (trata-se do diretor de finanças do Flamengo e sua esposa) usando camisetas verde-amarelas anti-corrupção e, de outro, a babá negra vestida em seu uniforme branco empurrando o carrinho com os dois filhos (também eles, apesar da pouca idade, devidamente uniformizados anti-Dilma).
Não quero entrar no debate infrutífero a respeito das contradições da foto, que inclui a legitimidade e as justificativas do casal em pleno ato de dever cívico e o patrocínio de um banco estatal ao time cujo emblema encontra-se estampado na camiseta de Cláudio e Carolina, nem as corrupções do futebol, nem os outros uniformizados da CBF que foram às ruas. O que me interessa é o uniforme da babá.
Quem viu o filme Que horas ela volta?, lembra bem da importância higiênica e asséptica que o uniforme exerce na hierarquia doméstica dos lares brasileiros. A babá Val, personificada por Regina Casé no filme de Anna Muylaert, se confunde com a anônima da foto de Valadares e traduz a realidade de outras tantas mulheres que, como sugeriu o empregador, são pagas para isso e, portanto, devem agradecer por terem seus empregos em época de crise como a nossa.
Nas redes sociais, o patrão sugeriu que até gosta da funcionária, a qual é até tratada com dignidade e é até mesmo livre para demitir-se caso não queira passear contra a Dilma no domingo. Às vezes a proximidade entre a vida e a arte não é pura coincidência. E quase sempre a vida é mais cruel do que parece – penso nas inúmeras meninas-mulheres-quase-escravas que continuam servindo os lares brasileiros, sem ainda acessar os mínimos direitos recentemente admitidos pela nação escravocrata que sempre fomos.
O uniforme tem papel simbólico relevante na medida em que hierarquiza as relações. A roupa define o lugar de cada indivíduo, deixa claro quem manda e quem obedece, quem paga e quem recebe, quem dá direitos e quem tem deveres. No seu ensaio de 1905, “Filosofia da moda”, George Simmel destacou o fato de que a vestimenta, antes de ser uma projeção de quem somos, forma e domestica nossas personalidades. Ela diz respeito às distinções sociais e aos valores que forjam as subjetividades no meio social.
Ela atende à nossa necessidade de diferenciação, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. Como um fator social, por isso, o uniforme é paradoxal: tanto diferencia quanto iguala, na medida em que nivela as pessoas e cria estabilidade social por meio do reconhecimento de classe. Não é por acaso que os mais pobres costumam “copiar” o que está na moda entre as celebridades: trata-se de acessar, pela vestimenta, o mundo glamoroso que a televisão faz entrar em seus lares diariamente e, com isso, recusar a prisão econômica de sua própria pobreza.
O uniforme tem também, em consequência, um fator psíquico: ele cumpre a função de adestramento das subjetividades na medida em que dá contornos ao corpo e limita seus movimentos, sob os olhares do outro. Uniformizados, não somos nós que expressamos nossas identidades através da roupa; mas, ao contrário, é a roupa que ordena e demarca quem somos. O modo como estamos vestidos define os nossos comportamentos: terno e gravata, por exemplo, impedem movimentos bruscos e gestos alongados, que são adequados quando estamos com roupas esportivas.
O artifício da roupa, portanto, cobre a nudez que nos torna iguais apesar da pele e nos adapta às circunstâncias. De branco, a moça da foto não protesta, trabalha. De branco, ela não se diverte, trabalha. E trabalhando, de branco, ela parece mais limpa e até mesmo um pouco invisível. Uniformizada, ela faz do branco aquilo que ele era para os discípulos de Asclépio, o deus grego da medicina: um símbolo de pureza espiritual que, nesse caso, torna possível a intimidade da babá na frequentação dos ambientes domésticos (a babá, afinal, é a intrusa mais íntima da vida familiar). De branco, assim, ela está purificada. De branco, ela reconhece as circunstâncias e se adapta ao seu cargo. E assim, adaptada, ela é aceita porque, afinal, “sabe” o seu lugar.
No filme, as cenas de Val com o filho único dos patrões, são incômodas. Enquanto o menino recusa o carinho da mãe, aceita as intimidades da babá (em francês, o título do filme insistiu nesse aspecto: “Une Seconde Mère”). Val parece não saber o seu lugar. Mas é Jéssica quem quebra definitivamente a norma e recusa o lugar social reservado à filha pobre e nordestina da babá. Entra na universidade que era lugar do filho do patrão. Banha-se na piscina. Quer ser hóspede e não empregada. Cria conflitos. Enerva as antigas relações.
Na foto, a babá negra veste a sua “segunda pele” (conforme a feliz expressão de Marshal McLuhan) como um adendo quase desnecessário diante da primeira pele negra, para a qual a pátria cuidou de garantir, desde 1850, quando da primeira Lei de Terras, um lugar apropriado: a senzala, os mocambos, as favelas, o porão, a cozinha, o quarto de empregada, a traseira do carrinho de bebês. Lendo-se ao inverso: não o aeroporto, o shopping, a mesma manicure, a mesma universidade. Não. Nunca. Afinal, o Brasil só é “pacífico” porque aqui, pobres, negros e outros indesejados, sabem o seu lugar. O uniforme, por isso, continua indispensável.
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