A reforma agrária é um tema recorrente no debate político brasileiro. José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Ignácio Rangel, Caio Prado Júnior, entre outros autores clássicos do pensamento brasileiro apontaram sua necessidade. O presidente João Goulart, pouco antes de ser derrubado, fez um discurso avassalador em defesa de reforma agrária. A ditadura trouxe o Estatuto da Terra, a Redemocratização, dois planos nacionais de reforma agrária. Entretanto, historicamente pouco se alterou o índice de Gini da terra no Brasil, ou, mais precisamente, piorou de 0,759 em 1920 para 0,854 em 2006. Após o fim do governo Lula em 2010, as desapropriações de terras foram praticamente paralisadas no país.
Ainda assim, de uma forma ou de outra, como o debate sempre retorna, podemos seguramente afirmar que o Brasil é o país da reforma agrária perene. Ao contrário de outros países onde se realizou uma reformulação completa da estrutura fundiária, nosso país segue chamando de reforma agrária uma política que precariamente fiscaliza a função social da propriedade da terra.
Discutir a função social da propriedade é primordial para relativizar o direito absoluto sobre a propriedade. O Papa Paulo VI já havia explicitado na encíclica Populorum Progressio que “o bem comum exige por vezes a expropriação, se certos domínios formam obstáculos à prosperidade coletiva, pelo fato da sua extensão, da sua exploração fraca ou nula, da miséria que daí resulta para as populações, do prejuízo considerável causado aos interesses do país”.
Aliás, a doutrina social da Igreja, mesmo quando expressa por um conservador como João Paulo II na encíclica Laborem Exercens condiciona o direito de propriedade ao recordar “a destinação universal dos bens e o direito ao seu uso comum”. O Papa Francisco reforçou a ideia na encíclica Laudato Si ao asseverar que
“Isto tem consequências práticas, como explicitaram os bispos do Paraguai: ‘Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa estabelecer o seu lar, trabalhar para a subsistência da sua família e gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido, que o seu exercício não seja ilusório mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado”.
A fiscalização do cumprimento da função social sob os aspectos do bem-estar, da produtividade, ambiental e trabalhista tornou-se um dever constitucional em 1988, embora isso não possa ser entendido como reforma agrária, já que esta tem começo, meio e fim. Entretanto, Caio Prado Júnior já nos alertava que as manchas de solo de pior qualidade são aquelas que acabam ficando na mão dos pequenos e médios proprietários e que a desapropriação apenas das grandes propriedades improdutivas perpetua este cenário.
É preciso ter a clareza de que a democratização do acesso à terra foi uma etapa necessária no desenvolvimento de nações hoje consideradas desenvolvidas. Todavia, no Brasil hoje de pouco adiantam argumentos sobre a eficiência maior da agricultura familiar, que produz a maior parte dos alimentos no país, ou mesmo qualquer tese sobre eventual efeito multiplicador ou anti-inflacionário de uma política de reforma agrária sobre a economia. Os que são contra a reforma agrária hoje advogam a tese de que o Brasil perdeu esse bonde da história.
Um dos pontos levantados por estas pessoas é que não há público para essa reforma agrária e que haveria necessidade, no máximo, de se atuar pontualmente nos conflitos existentes e assentar as cerca de 120 mil famílias acampadas no País. Isso é uma falácia. Os dados do Censo Agropecuário do IBGE de 2006 mostram uma demanda muito maior, como pode ser observado na tabela abaixo:
A tabela acima mostra que a demanda existente por reforma agrária é muito maior do que o número de famílias acampadas. Se considerarmos aqueles que hoje produzem sem serem proprietários rurais e excluídos os arrendatários, temos uma demanda para o assentamento de 809 mil famílias. Ainda existem, segundo o mesmo Censo, pouco mais de 230 mil estabelecimentos sob a gestão de arrendatários, o que ainda poderia aumentar esse público potencial de uma reforma agrária efetiva no Brasil.
O Estatuto da Terra (lei 4.504 de 30 de novembro de 1964) assim estabelece em seu artigo 16:
“A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.”
Ora, se é objetivo da reforma agrária eliminar o minifúndio, devemos considerar que todos aqueles em estabelecimentos inferiores a 2 hectares também são um público potencial para um programa de reforma agrária real. Sob esta ótica, o público potencial a ser atendido pela democratização do acesso à terra no Brasil seria de mais de um milhão de famílias.
Dentre os vários entraves jurídicos e econômicos que o Brasil enfrenta na efetivação do Programa Nacional de Reforma Agrária, destacam-se os juros compensatórios pagos pelo Poder Público na desapropriação por interesse social para fins de Reforma Agrária. Embora tal desapropriação seja uma sanção pelo descumprimento da função social da terra, o proprietário do imóvel de grandes dimensões que não atingiu índices mínimos de produtividade, não respeitou as legislações ambiental e trabalhista ou foi foco de conflitos e violência no campo recebe o preço da terra em valor de mercado com um acumulado de juros de 12% ao ano, contados desde a perda da posse até o pagamento da indenização.
No Brasil, a desapropriação para fins de reforma agrária sempre garantiu ao proprietário uma justa indenização, o que significava o pagamento, pelo Poder Público, do valor de mercado do imóvel expropriado. Nas décadas anteriores a 1990 os tribunais superiores firmaram o entendimento de que a justa indenização pressupunha – para além do valor de mercado que previa a lei – o pagamento de juros de 12% ao ano como compensação pela perda da posse do imóvel rural apontado pelo Poder Público como descumpridor de sua função social. Como base desse entendimento estava a ideia de compensar os lucros que o proprietário receberia se continuasse produzindo no imóvel desapropriado.
Duas questões fundamentais mostram a falta de lógica dos tais juros compensatórios. A primeira é a taxa de 12% ao ano, acima de muitos investimentos no mercado e com risco zero. Ou seja, apesar de a agricultura ser uma atividade sujeita a altíssimos riscos devido à imprevisibilidade meteorológica, tais juros premiam um proprietário improdutivo com retornos que dificilmente ele teria se se mantivesse no negócio.
Ademais, a taxa de 12% é um verdadeiro prêmio, uma vez que um imóvel em vias de desapropriação sequer atingiu índices mínimos de produtividade fixados em 1975 e há muito defasados.
Ora, um proprietário de um grande imóvel rural que não cumpre sua função social – e que por isso mereceu a desapropriação-sanção constitucionalmente prevista – acaba premiado com uma alta rentabilidade (que ele não tinha!), que se soma ao preço de mercado da área monetariamente corrigido a ser recebido.
Em 1997, a Medida Provisória 1577 reduziu para até 6% a taxa de juros que vinha sendo fixada pelos tribunais, à semelhança das taxas pagas pela caderneta de poupança à época, além de alterar a base de cálculo para a diferença entre a indenização ofertada pelo Poder Público e o valor fixado pela decisão judicial como sendo o preço de mercado do imóvel. Em 2001, em liminar concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2332, o STF suspendeu os efeitos da Medida Provisória 1577, restabelecendo o patamar de 12% ao ano de juros compensatórios. Além disso, ampliou a base de cálculo dos juros, que passaram a incidir sobre a diferença entre o valor de indenização fixado na ação judicial de desapropriação e 80% do valor ofertado pelo Poder Público.
O resultado da equação, nos anos de 2011 a 2016, gerou um gasto de R$ 978 milhões do Programa Nacional de Reforma Agrária apenas com pagamentos de juros compensatórios a proprietários de grandes imóveis rurais que cometeram o ilícito constitucional do descumprimento da função social da terra.
Os juros compensatórios são a forma mais eficiente de se conseguir lucro financeiro com uma propriedade declarada pelo Poder Público como descumpridora do princípio da função social, condicionante do direito de propriedade no Brasil.
A desapropriação do imóvel rural para fins de reforma agrária, que deveria ser uma punição aplicada ao latifúndio que descumpre sua função social, acaba como fonte de lucros exorbitantes para seus proprietários por conta dos juros compensatórios.
Em 16 de maio, o STF julgará em definitivo a ADIn 2332, podendo manter os juros em 12% ou retorná-los ao patamar de até 6% previsto pela Medida Provisória de 1997. Está nas mãos do STF reduzir um inexplicável rentismo pago aos senhores dos latifúndios improdutivos do Brasil. Ou o STF garantirá o enriquecimento improdutivo?
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