O sentimento genuíno e concreto de ausência na política atual, que emergiu em termos nacionais durante as manifestações de junho de 2013, resultou em dois processos antagônicos de mudança no País: a retomada do projeto de Democracia Popular, centrada nas reformas de base, em especial a Reforma Política; e a retomada do Salvacionismo, força política tradicionalmente conservadora que, empenhando abstrações como a unidade nacional e o governo das pessoas boas, valem-se da leveza ufanista para negar conflitos graves existentes no interior da sociedade brasileira.
Diante dessa clivagem entre projetos, é inevitável perceber como a candidatura de Dilma Rousseff tende a se aproximar mais das reformas de base enquanto a candidatura de Marina Silva vai adotando uma plataforma essencialmente moralista.
Mesmo reconhecendo que determinados pontos explícitos no programa desta última sejam superiores em formulação quando comparada às propostas do campo dilmista, é fundamental compreender que o grau de conflito interno provocado entre as forças concentradoras da riqueza e a atuação política de Dilma é da mesma natureza do conflito de todo o ciclo político do “lulismo”.
Porém em maior intensidade, cuja polarização recente revela como a possibilidade de superação do modelo de desenvolvimento atual para uma “democracia de maior intensidade” está nas mãos de Dilma e não de Marina.
Marina teria de vencer novamente todos os “pedágios” dos donos do poder para consolidar-se como força política, mantendo vetores progressistas ao longo do tempo.
Fazer isso sem o mínimo de uma estrutura partidária sólida, seja na nova ou na velha política, é muito menos provável, ainda mais com o sentimento errático de Marina em relação às bandeiras históricas defendidas pela esquerda para a transformação definitiva do Brasil.
No entanto, desde pronto as intensões progressistas do programa de governo de Marina já foram checadas pelo grande capital, já está capitulado.
Lula e Dilma já enfrentaram muitos pedágios – e perderam outros –, mas, após as manifestações de 2013, a presidenta reagiu às demandas nas ruas com algo além de vagas promessas.
Pressionando a aprovação de projetos que estavam em tramitação no Congresso Nacional ou agindo com as atribuições do Executivo, Dilma recebeu os movimentos sociais e construiu uma agenda de longo prazo, com um conteúdo altamente democrático e progressista para nossos padrões atuais, centrado nos seguintes pontos:
• Estatuto da Juventude, criando um marco estruturante na inclusão dos jovens numa sociedade em que eles já se configuram como o grupo mais representativo;
• Marco Civil da Internet, garantindo direitos permanentes ao caráter cidadão da Internet, protegendo o usuário dos grandes interesses econômicos;
• Lei dos Royalties do Pré-sal para Educação e Saúde criou um fundo estratégico de financiamento de patamares superiores políticas públicas nas áreas de educação e saúde;
• Plano Nacional de Educação, viabilizado pela lei do Pré-sal, garantirá níveis adequados de financiamento (10% do PIB);
• Política Nacional de Participação Social, que inovou ao reconhecer formas de participação com redes digitais e que, junto com o Marco Civil da Internet e a expansão do acesso à banda larga, transformará o Brasil no primeiro grande celeiro para a hiperdemocracia;
• Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, que criou novo patamar de relação entre o Estado e a Sociedade, garantindo estruturas de controle dos recursos públicos e ampliando a capilaridade das políticas públicas por meio das organizações sociais;
• Programa Mais Médicos, que mudou em pouco tempo o paradigma de atuação do sistema público de saúde, ampliando o atendimento para milhões de pessoas;
• O fortalecimento de obras de mobilidade urbana no PAC2, dialogando com o motivo primário que levou os jovens às ruas em 2013;
• E o apoio à Reforma Política, a mãe de todas as reformas de base, cuja proposta enviada ao Congresso Nacional, no entanto, foi derrotada pelas forças conservadoras. Hoje, a saída é o plebiscito para uma Constituinte exclusivamente eleita para encaminhar essa grande demanda das manifestações de junho de 2013.
A resposta de Dilma às ruas leva-nos a compreender o significado simbólico da sua trajetória de vida. Assim como Lula e Marina, Dilma formou-se no contato direto da experiência modernizante-conservadora da ditadura militar, no entanto, as contradições criaram trajetórias muito distintas.
Lula, como dito antes, é o conflito da modernização com a pobreza, emerge dos povos retirantes para o centro da industrialização brasileira como um líder nato, de incomum capacidade de intuição e decisão política.
Marina é o conflito da modernização com a tradição, cuja resultante está no sentido da civilização ocidental, questionando fundamentos basilares das sociedades urbano-industriais, como é o caso da própria política.
E Dilma? É o conflito da violência conservadora contra a utopia social. Dilma nasceu politicamente não nas greves, nem nos “empates”, nasceu na tortura de um Estado de exceção criado para garantir privilégios dos donos do poder, contra o projeto de uma democracia efetivamente popular.
Essa referência simbólica demonstra as reais possibilidades de que o campo político de Dilma possui vida própria no sentimento nacional, está conectado com a história do Brasil, e não se trata apenas um prolongamento do “lulismo”.
Se Marina tivesse sido capaz de manter sua dimensão simbólica sem aderir às teses neoliberais que operarão invariavelmente para destituir a “Nova Política” de tudo o que poderia ser novo, o debate com Dilma ganharia uma polarização simbólica extraordinária entre projetos.
Mas a capitulação de Marina reforçou as forças transformadoras do projeto dilmista, desenhado concretamente na reação propositiva às manifestações de junho.
A “Nova Política” está fora de lugar, encontra-se na dureza simbólica de Dilma, que antes enfrentou com sonhos o fascismo e agora quer reconduzir a Democracia Popular para o centro da dinâmica social brasileira.
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