O desenvolvimento do capitalismo no Brasil veio da tensão imposta pelo latifúndio improdutivo. Suas principais chances de superação se deveram a um projeto nacional interrompido na década de 1980. Desde então, ganha evidência um urbanismo improdutivo como contraface do processo de desindustrialização nacional.
Essa problemática impõe limites graves a qualquer estratégia de desenvolvimento voltada para profundar a mobilidade social. É esse o cerne do embate atualmente no país e não simplesmente quando a economia vai voltar a crescer.
Diante disso, o que a forças ditas de esquerda querem defender? Disputar qual facção é a verdadeira portadora de valores humanitários bons e justos? O ponto de partida é assumir um compromisso com o povo, ter orgulho da sua cultura, da sua cor, de sua própria capacidade de superação.
O povo ensina às forças de esquerda que o que importa é a capacidade de superação. É preciso compreender o sentido da história, e, assim, o sentido da formação como civilização brasileira.
Não existe história sem contradições. A história do Brasil é grandiosa, complexa, base para uma superação profunda, capaz de despertar uma vontade de potência contra o “complexo de vira-latas”. A história avança quando um povo passa a ter orgulho de si mesmo e quer ser sujeito da história mundial, o que exige um projeto nacional capaz de lidar com tensões e lutas na hierarquia de poder global.
Por essa razão, o direito à cidade não é o direito a uma “tribo” ou a uma “paróquia”. O direito à cidade é o direito a torná-la uma peça do desenvolvimento nacional do ponto de vista do desafio da integração e unidade do território.
Para isso, a cidade deve ser vista como um processo e não como algo que pode ser de um conjunto de pessoas ou do “capital”. Afinal, segundo Marx, o próprio capital não é uma coisa, mas uma relação social entre classes que corresponde a uma determinada formação histórica de sociedade e lhe confere um caráter específico.
Nesses termos, o que se deve discutir é a dimensão histórica e o caráter específico de um processo de urbanização que define um padrão de acumulação de capital e a forma de reprodução social em uma realidade concreta.
As perguntas fundamentais não se referem a como tornar a cidade “nossa” frente ao poder do capital, mas, sim, qual o tipo de capitalismo nós queremos desenvolver e, dialeticamente, lidar com suas contradições (ou seja, antecipar-se a elas através do planejamento).
No caso da cidade do Rio de Janeiro, propor como estratégia pública só se reapropriar da cidade, mesmo que coletivamente, é desconsiderar a totalidade histórica, é desconsiderar as forças com capacidade de endogenia de desenvolvimento. É tentar se apropriar de parte de um território nacional sem discutir seu processo de formação. Assim, não considera a necessidade de lidar com pesados processos de concorrências entre economias nacionais e seus grandes blocos de capitais oligopolizados, e como a cidade é uma força econômica indutora para disputar essas fronteiras.
Em suma, é uma concepção de cidade que renuncia a ter uma concepção de país. Desse modo, tornaria a cidade um “fetiche” que sonha se defender daquilo que não se prepara para ser capaz de comandar. Inversamente, o desafio deve ser interpretar originalmente o protagonismo do Rio de Janeiro, logo, interpretar suas especificidades.
Cabe lembrar o conceito-síntese criado por Carlos Lessa: “Rio de todos os Brasis”, justamente para ressaltar como é essencial reconhecer que a cidade articula a produção de uma riqueza sem igual: a riqueza civilizatória. Sim, o “Rio de todos os Brasis” tem miséria, tem violência, tem injustiças… Mas tem um destino no mundo: ser um dos berços de uma civilização mestiça. Logo, o que se precisaria é reconquistar o direito de servir a essa pátria por se fazer.
Para se partir de uma estratégia de desenvolvimento para o Rio de Janeiro, é irrisório buscar mapear lacunas setoriais e/ou é mistificador fazer um inventário de vocações locais. O fundamental é ter a noção de um processo sinérgico para avaliar as possibilidades de superação em dado padrão histórico de ações e estruturas concatenadas.
Logo, é preciso avaliar a capacidade de polarização das unidades produtivas, de constituição de forças aglomerativas e de uma hierarquia socioespacial dentro de uma rede urbana. Em particular, é preciso destacar como isso é mediado por um processo de formação nacional em que ganha prioridade o trato das configurações metropolitanas.
Caso contrário, não conseguiremos lidar com uma urbanização que é fascinante para olhares afeitos e apaixonados por modernizações aparentes, mas que não penetram e desconhecem a reprodução de forças de atraso associadas a ela.
Ou a centralidade do problema econômico é reconhecida e as políticas são reorientadas para o avanço de um sistema de forças produtivas, ou serão as relações sociais de produção que serão readequadas para um quadro de regressão mercantil. Isso se traduz, inclusive, em considerar perdas de direitos e conflitos urbanos como necessários à expansão econômica (consequências mais que presentes).
Por essa razão, as forças de esquerda precisam encarar a sério o desafio do desenvolvimento de um capitalismo financeiro no Brasil, sendo propositiva para impedir que o rentismo e o patrimonialismo desvirtuem seu sentido. Ao fazer o exercício da crítica, não podemos negar a necessidade de discutir as possibilidades desse desenvolvimento em prol de combinar função social da propriedade com mecanismos de indução para a dinamização de uma economia urbana.
A resposta a uma coisa tem que ser articulada a outra a fim de enfrentar o binômio desindustrialização-urbanização improdutiva. Se isso for feito, a definição da ocupação do solo responderá as prioridades do planejamento do desenvolvimento socioeconômico. Assim, será capaz de articular corretamente demanda e oferta, ao invés de só se preocupar em “dourar a pílula”, ou seja, melhorar as condições de oferta de ativos imobiliários.
Não é só exclusão social, é malformação nacional e regional dentro de um tipo de desenvolvimento capitalista que não cumpre seu papel histórico diante de o moderno servir ao atraso e o atraso servir ao moderno (não havendo a superação idealizada).
Ir além do discurso da euforia exuberante com grandes eventos e do discurso do oprimido insurgente é fundamental para se compreender as possibilidades de transição no bloco histórico e planejar um novo padrão voltado ao fortalecimento de um complexo econômico regional.
Crédito da foto da página inicial: Creative Commons – CC BY 3.0
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