O escândalo da “Carne Fraca” mostrou várias coisas ao mesmo tempo. Antes de mais nada, escancarou a luta pelo protagonismo dentro da Polícia Federal – cada delegado querendo aparecer mais do que o outro. A qualquer custo. Depois, a tentativa de chantagear políticos, pela mesma instituição: primeiro, um recado ao ministro da Justiça, supostamente “chefe” da PF; quando outro ministro criticou a PF, reação parecida.
Depois veio Blairo Maggi – que Deus o tenha e o Diabo o receba. Não constava em delações, no dia seguinte a suas declarações, passou a constar. E os delegados fizeram questão de alertar: o que vazamos é apenas parte de nossa munição. O estado policial foi deslanchado com os golpistas e agora reina absoluto. Manda recados via vazamentos.
Será que alguém, fora Poliana, achava que a indústria da carne era pura e saudável? Ora, será que alguém pensa algo semelhante sobre o leite, os pães, os remédios, as frutas e legumes? Existe alguém que pelo menos não suspeite que comemos venenos e falsificações todo dia? Será que alguém imagina que alguma dessas grandes corporações paga em dia e integralmente os impostos e taxas? Será que alguém sonha que em algum dia o reino dos fiscais era imune às gracinhas dos fiscalizados? Só agora nos “escandalizamos” com essas “revelações”?
Neste episódio, argumentos sobraram de todos os lados. Sobre as maldades dos carniceiros – óbvias. Sobre as vantagens dos competidores internacionais com este choque – igualmente óbvias. Sobre a briga de bastidores para ocupar espaço, mídia e poder – algo também muito óbvio.
O que não apareceu – e, no entanto, deveria ser óbvia – é a necessidade de criar canais permanentes e ampliados de “transparência”, essa palavra tão utilizada e tão cínica. Vou sugerir um deles, que venho repetindo faz tempo.
Por que não temos, no Brasil, uma representação dos trabalhadores na gestão das empresas – como em outros países que se livraram de ditaduras fizeram? É o caso de perguntar por que não temos eleição de comitês de empresas, com trabalhadores eleitos diretamente pelos seus companheiros, com mandato e estabilidade, com direito a inspecionar e divulgar as informações sobre a empresa: de quem compra, quanto vende, quanto paga de impostos, e assim por diante. Por que delegar a exclusivos fiscais do estado – por mais honoráveis que sejam – a vigilância fiscal, sanitária, ambiental e trabalhista?
Mais uma vez – estou ficando repetitivo – sugiro que os ativistas sindicais brasileiros, aqueles que ainda restam, deem uma olhada na legislação que a social-democracia alemã traduziu e entregou aos parlamentos espanhol português, depois da queda das ditaduras. Sim, só traduziu, não precisou nem inventar. Pode ser um ponto de partida. Até porque a representação trabalhista que temos é claramente envelhecida, burocratizada e, agora, se desmancha diante da pulverização do mercado de trabalho, graças à terceirização, automação e subcontratação.
Diante de escândalos como este, da Carne Fraca, está mais do que na hora de colocar na agenda um conjunto de propostas de esquerda. Que não apenas aumentem a regulação política dos interesses econômicos. Mas, também, oxigenem esta representação política.
Sindicalistas: ou mudam ou morrem de inanição
E já que estou no tema, aproveito para pegar carona em outro evento relevante do momento. O Congresso mercenário acaba de aprovar uma lei de desregulamentação e pulverização do mercado de trabalho, a chamada terceirização do fim do mundo. É um passo importante, mas é um passo numa caminhada que vem desde muitos anos. Faz tempo que o mercado de trabalho vem sendo esquartejado por operações do capital – via legislação e também via reengenharia das empresas. O resultado foi a fragmentação das categorias e o enxugamento das bases de muitos sindicatos, que viam seus representados e filiados escorrerem pelos dedos. A legislação recém aprovada dá um novo tranco – bem mais forte – nessa direção.
Os ativistas sindicais – aqueles que ainda existem – devem pensar rapidamente em criar ferramentas e formas de organização que respondam a esse desafio. Fenômenos semelhantes em outros países – como os Estados Unidos – podem servir de alerta ou inspiração.
No cenário americano, ao lado desses vetores que apontamos – automação, terceirização, subcontratação, migração de plantas – ainda se somou a massiva imigração latina, a terceira onda de migração daquele país. A selvageria do mercado de trabalho exigiu que ativistas de esquerda e sindicalistas (as frações menos burocratizadas da central AFL-CIO) inventassem novas ferramentas para organizar e mobilizar os trabalhadores formais e informais. Surgiram experimentos como os como os worker centers, as “paróquias” do Working America (movimento comunitário animado pela AFL-CIO) e as várias experiências de “sindicato-movimento social” que se espalham principalmente em regiões de forte presença de imigrantes.
Está mais do que na hora de a esquerda entrar na disputa com sua própria cara – e talvez coisas pequenas mas ousadas como estas sejam uma pista.
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