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O photoshop do capitalismo contemporâneo

O capitalismo é marcado pelo seu caráter dinâmico, contraditório e de dominação política e ideológica, que transforma constantemente os vários aspectos do modo de vida, engendrando uma série de conflitos na sociedade, que, em um movimento também contraditório, adere e resiste aos novos “modelos” de vida civilizada.

Uma arma contemporânea do capitalismo que consegue violentar os valores sociais de modo muito sedutor é a publicidade (incluindo as estratégias de marketing e criação de marcas). Não criando valores e desejos novos, mas reforçando e manipulando os valores já existentes na sociedade.

A publicidade é uma espécie de photoshop do sistema, pois permite uma edição tridimensional do modo de vida capitalista, não apenas escondendo os efeitos violentos da mercantilização da vida social, mas milagrosamente transformando em fascínio algo que era para ser contestado.

Essa faceta da publicidade ocorre porque ela se tornou muito mais do que apenas um discurso para vender mercadorias, ela é a própria mercadoria, consumida e ressignificada. Por isso, é o principal objeto de consumo para descrever a nossa atual sociedade de consumo.

O sociólogo Jean Baudrillard explica de forma didática o papel da publicidade nos nossos dias ao compará-la com a figura do papai Noel.

Assim como as crianças não se importam com a existência real da figura natalina, uma vez que o importante é que seus pais lhes deem um presente em nome dele, as pessoas também não se importam com a veracidade do discurso da publicidade, dado que o essencial é a cumplicidade da crença.

Ou seja, o que importa é que ela seja compartilhada, já que a “crença” funciona apenas porque se funda na reciprocidade da manutenção da relação.

É fácil entender tal questão a partir da análise das próprias propagandas. Por exemplo, consumir o comercial da Coca-Cola hoje em dia é muito mais do que acreditar que é uma bebida saborosa, tanto que seu slogan é “viva o lado coca-cola da vida”, associando o produto com felicidade, liberdade e prazer momentâneo.

Consumir a propaganda de uma tintura de cabelos não é acreditar que quem utiliza o produto possuirá os cabelos iguais ao da Juliana Paes ou outra modelo do comercial, tanto que no slogan “L´oréal, porque você vale muito!” fica clara a tentativa de associar a marca com questões subjetivas valorizadas atualmente, como a elevada autoestima.

Para que a publicidade venda felicidade, modernidade, liberdade, autoestima, igualdade, exclusividade e outros valores, foi necessário que essas características se tornassem escassas para a maioria da população, para que se transformassem em objetos de desejo de consumo.

A sociedade de consumo tornou a sociabilidade ainda mais individualizada e impessoal, despersonalizando os indivíduos, uma vez que as relações sociais ocorrem por meio da manipulação do universo dos símbolos e signos das mercadorias.

O consumo torna-se, dessa forma, o principal critério de diferenciação social.

O conjunto de características psicológicas que determina os padrões de pensar, sentir e agir, ou seja, a individualidade é pautada, na sociedade atual, por intermédio do consumo e a sociabilidade ocorre através do meio do nível de aderência ao sistema de signos criados pelo processo produtivo, mas que mantêm um modo ativo com a sociedade, que participa na construção desses signos.

Ser alguém é estar constantemente atualizado no mundo da moda, não apenas em relação a carros, corpo, roupas e smartphones, mas, sobretudo, em valores, crenças e desejos.

É por esta razão que Jean Baudrillard afirma que o culto da diferença se funda na perda total das diferenças substantivas.

A diferença é que imprime a identidade ao indivíduo, a questão é que as diferenças que hoje importam se referem ao ter e não ao ser, a massificação anulou tanto as individualidades que elas passaram a ser fabricadas, por isso nossa sociedade é marcada pela despersonalização e culto a diferença não substantiva (supérflua), reduzindo o elo social.

Desse modo, em uma sociedade em que o que é valorizado é a abundância de objetos, a publicidade cumpre com o papel de preencher o vazio que o desenvolvimento capitalista nos trouxe ao coisificar o ser humano e humanizar as coisas.

Sendo, por esta razão, um editor das imagens do capitalismo, fazendo as pessoas acreditarem que o real é a imagem falseada criada a partir do real.

Outra característica importante da publicidade é seu papel de democratizar e homogeneizar os desejos de consumo (em escala global por meio das transnacionais).

Afinal, apenas o desejo coletivo é capaz de criar as ‘necessidades’ sociais, porque os indivíduos só acreditam na publicidade porque confiam que os outros também estão acreditando.

Por exemplo, um outdoor do novo carro do ano que se encontra em um local onde milhares de pessoas irão ver e desejar todos os dias, mas apenas uma porcentagem ínfima irá conseguir realizar esse desejo e apenas por isso é objeto de ambição.

Um grande problema que cresce com o tempo é que os gastos com publicidade crescem em nível mundial em uma taxa maior do que o crescimento da renda média em uma sociedade estruturalmente desigual, tornando cada vez mais problemático acreditar no mito da abundância, pois fica cada vez mais claro que esse mito se sustenta no seu oposto.

Resistir a toda essa lógica começa justamente em enxergar os grandes problemas contemporâneos sem nenhuma farsa, sem nenhum photoshop.

Enxergar a raiz dos problemas é o único meio de produzir formas de enfrentamento, uma vez que não é possível curar uma doença apenas com o conhecimento dos sintomas superficiais, é necessário compreender o que está provocando o surgimento e desenvolvimento da doença.

Sabemos que a publicidade é apenas um componente da lógica do sistema capitalista, mas que tem um papel cada vez mais fundamental ao ampliar a alienação, contribuindo para que a sociedade exalte uma falsa e ilusória abundância, ao invés de resistir à violência de um sistema essencialmente excludente.

Aderir à sociabilidade que a publicidade explicita é muitas vezes irresistível, é extremamente difícil não participar das novas tecnologias e formas de interação social criadas. Por isso, o caminho é resistir coletivamente, construindo novas formas de se viver em sociedade.

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