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Foto do escritorJoacir Rufino de Aquino e Sergio Schneider

O papel da agricultura familiar na superação da crise atual

Atualizado: 15 de ago.


O agronegócio brasileiro é pujante, mas não resolve três problemas centrais agravados pela Covid-19 e que a agricultura familiar pode ajudar a enfrentar: inflação dos alimentos, desemprego e volta da fome

As notícias das últimas semanas não poderiam ser mais desalentadoras: o Brasil vive um momento que combina o aprofundamento da pandemia da COVID-19, com aumento de infectados e óbitos, estagnação econômica e a triste volta da fome. Já era esperado que a crise de saúde pública afetasse o desempenho da economia, mas o que ninguém queria era uma piora tão aguda e rápida no quadro social.


O desalento se explica porque o Brasil tinha saído do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2013. Porém, a situação piorou nos últimos anos e assumiu números alarmantes devido à pandemia. De acordo com levantamento desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), no final de 2020, mais de 116,8 milhões de pessoas enfrentavam alguma situação de insegurança alimentar e 19,1 milhões de pessoas estavam passando fome no país.

Como é possível que haja fome em uma nação que possui um agronegócio tão pujante? A pergunta parece soar estranha, afinal o Brasil se orgulha da sua agricultura de exportação, que a cada ano aumenta seu superávit e bate recordes sucessivos de produção. A propaganda televisiva diz que o “agro é pop, é tech, é tudo”! Os representantes das entidades de classe ruralistas são muito ativos nas mídias e a Frente Parlamentar que leva seu nome atua com afinco no Congresso Nacional.

Para embaralhar as cores deste paradoxo, a CONAB acaba de anunciar que está liberada a importação de milho e soja! Esta informação está correta mesmo? Sim, o Brasil suspendeu as taxas de importação de milho e soja porque há riscos de a oferta interna não ser suficiente para abastecer os criadores de frango e suínos, entre outros, que usam estes grãos para alimentar seus rebanhos.


A explicação é simples: a safra nacional destes produtos foi vendida de forma antecipada, um ou até dois anos atrás, em razão da alta dos preços internacionais e da demanda interna que cresceu acima do esperado.

Sendo assim, a volta da fome e o crescimento da insegurança alimentar, bem como o desabastecimento do mercado consumidor interno, que precisa ser suprido com importações, jogam por terra o argumento recorrente de que agronegócio garante a segurança alimentar nacional.

Compete sublinhar que este pequeno texto não é sobre o agronegócio, mas sobre a agricultura familiar. O segmento pode contribuir de forma decisiva para suprir a falha deixada pelo setor agroexportador e cumprir outras funções. Como reconhecemos em outros trabalhos, o agronegócio é importante para o país e uma parcela da agricultura familiar também se insere neste universo, apontado como sinônimo de agricultura industrial de exportação baseada em cadeias longas de commodities.


Entretanto, uma parcela maior e mais significativa da agricultura familiar está inserida nas chamadas cadeias curtas de distribuição e dedica suas lavouras e rebanhos para o abastecimento do mercado interno.

Soergue-se aqui nosso argumento central: a agricultura familiar é importantíssima para a segurança alimentar e o abastecimento do Brasil e possui papel estratégico para tirar o país da crise alimentar em que se encontra, além de contribuir para melhoria de indicadores sociais e econômicos.


O problema é que ela foi abandonada, está sem reconhecimento e, sobretudo, sem apoio político adequado na forma de crédito, assistência técnica e acesso a mercados.

Os agricultores familiares que não estão inseridos nas cadeias de exportação de commodities poderiam suprir a falta de alimentos e amenizar a fome, especialmente nas áreas rurais e nos pequenos municípios. Mas falta-lhes apoio para que possam fazer frente às múltiplas carências que caracteriza a sua condição.

O Brasil é absolutamente afortunado por ter uma agricultura diversificada, forte e pujante, capaz de produzir excedentes e exportar para outros países. Não há contradição entre agricultura de exportação para geração de divisas e de riqueza e de abastecimento doméstico. O problema é que a agricultura não pode faltar com a segurança alimentar dos cidadãos brasileiros. Não faz sentido importar soja e milho, assim como é vergonhoso e inaceitável o proselitismo das toneladas exportadas enquanto muitos brasileiros passam fome.

Somos sortudos por ter uma agricultura familiar que contribui sobejamente ao abastecimento alimentar. O Censo Agropecuário 2017 apurou que o Brasil tem 3.897.408 agricultores familiares. Juntos, eles representavam 77% dos estabelecimentos agrícolas do país, ocupavam mias de 10 milhões de pessoas (67% do total recenseado) e eram responsáveis por parcela expressiva da oferta dos principais alimentos básicos que vão para a mesa dos brasileiros no dia a dia.

Ainda segundo o IBGE, os agricultores familiares respondem por 11% da produção de arroz, 42% do feijão preto, 80% da mandioca, 73% do pimentão e 47% do tomate. Na pecuária, o Censo revelou que eles produzem 64% do leite de vaca do país e concentram 31% do rebanho bovino nacional, 51% dos suínos e 46% das galinhas. Ou seja, a categoria é relevante para a segurança alimentar em face do que produz e da sua quantidade.


Por conseguinte, é possível afirmar que a agricultura familiar pode ajudar a sociedade brasileira a enfrentar três problemas centrais, que foram agravados pela pandemia da COVID-19: a inflação dos preços dos alimentos, a volta da fome e o desemprego.

Em relação ao primeiro problema é sabido que a inflação possui efeitos perversos para o conjunto da economia, mas no setor alimentos há agravantes, especialmente porque o processo inflacionário acaba corroendo os salários e os ganhos dos mais pobres de forma mais rápida, até mesmo antes de se alastrar para outros estratos sociais. A alta dos preços da comida corrói, sobretudo, a renda dos trabalhadores urbanos. Por exemplo, em São Paulo, principal centro metropolitano do país, estudos do DIEESE mostram que o preço dos alimentos subiu 24,67%, em 2020.


Note-se que parte da escalada inflacionária é causada pela desvalorização do real e pela corrida desenfreada do agronegócio para atender a demanda do mercado internacional com exportações de grãos (soja e milho) e carnes. Esse movimento retrai a oferta interna puxando os preços para cima.


Como os olhos dos produtores de commodities estão voltados para a exportação, o incentivo ao aumento da produção de alimentos pela agricultura familiar (arroz, feijão, legumes, frutas, verduras, ovos e carnes) poderia contribuir diretamente para reduzir a inflação que tem sido enfrentada sem muito sucesso mediante a importação de alguns produtos.

Além do impacto positivo na diminuição da carestia dos preços da comida, o aumento da oferta de produtos pela agricultura familiar também poderia ajudar a enfrentar o segundo grave problema, mencionado no início, que é a fome e a insegurança alimentar.

Na realidade, a agricultura familiar tem atuado de maneira destacada no combate à fome desde o início da crise sanitária que assola a nação. Há um crescimento exponencial nas vendas por meios digitais, como plataformas e sites, WhatsApp e entregas de cestas em domicílio. Ao longo de 2020 surgiram várias campanhas solidárias de distribuição de alimentos para as pessoas carentes, tendo por base a produção familiar de alimentos e as cadeias curtas de distribuição.


Evidentemente, a agricultura familiar pode contribuir muito mais fornecendo comida de qualidade para abastecer as feiras e os programas públicos de alimentação escolar e distribuição de cestas básicas, entre outras iniciativas.

Quanto ao enfrentamento do problema do desemprego mensurado pelo IBGE, que atingiu 13,5% da população brasileira em idade de trabalhar em 2020, a contribuição da agricultura familiar é duplamente importante. De um lado, porque o setor já absorve mais de 10 milhões de pessoas, evitando que o êxodo rural agrave o problema da desocupação nas cidades.


De outro lado, porque políticas públicas de estímulo poderiam gerar centenas de novos postos de trabalho assalariado e por conta-própria em atividades agrícolas e não-agrícolas, melhorando a renda e a capacidade de consumo, o que fortaleceria o mercado interno.

Com efeito, a função da agricultura familiar para o fortalecimento do mercado interno é estratégica e contrasta com o modelo do agronegócio de commodities. Isso porque a estrutura produtiva do agronegócio brasileiro é extremamente concentrada e tem limites distributivos. Os ganhos monetários angariados com o boom das exportações beneficiam poucos e tendem a se concentrar nas mãos de uma elite que gasta menos nas economias locais, como no comércio e na compra de bens de consumo, como fazem os pequenos agricultores.

Os ricos gastam no exterior – quando podem viajar – ou nos shoppings centers das grandes capitais do centro-sul do país, que ficam a léguas de distância do local onde as suas fazendas se localizam. Em vista disso, o apoio à agricultura familiar é fundamental para melhorar a estrutura de distribuição da riqueza no campo e gerar mecanismos de desenvolvimento local endógeno nas economias interioranas, especialmente dos pequenos e médios municípios.

Pelo conjunto de aspectos mencionados, era de se esperar que o Estado brasileiro estivesse fazendo mais para aproveitar o potencial da agricultura familiar. Mas, na prática, não é isso o que tem acontecido. Afora algumas ações emergenciais e a manutenção da política de crédito rural do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), o que temos assistido é um movimento de “invisibilização” da agricultura familiar.


Nos discursos oficiais do alto escalão do governo só existem “produtores rurais” e parece que não faz diferença ser pequeno, médio ou grande, mas faz! Ainda bem que a CONTAG, em seu 13º Congresso da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura realizado de 6 a 8 de abril de 2021, virtualmente, chamou a atenção para isso.


De fato, o governo federal brasileiro não tem direcionado suas ações no patamar exigido para o fortalecimento da agricultura familiar. Ao contrário, assiste-se no país a um processo preocupante de descontinuidade e desmantelamento das políticas públicas voltadas ao setor, bem como ao desmonte das estruturas administrativas de apoio à categoria, como foi o caso da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 2016.


Nos anos recentes, importantes políticas públicas estruturantes, como a reforma agrária, assistência técnica, educação do campo, agroindústrias e de apoio aos territórios rurais, foram paralisadas ou tiveram cortes drásticos nos orçamentos. Iniciativas promissoras como a política nacional de agroecologia e produção orgânica foram praticamente abandonadas.


A falta de sensibilidade se agravou ainda mais durante a pandemia. Isto porque medidas emergenciais propostas para apoiar a agricultura familiar foram simplesmente desprezadas. Basta dizer que o Projeto de Lei 735/2020, que previa um conjunto de ações emergenciais e de médio prazo para proteger o segmento e potencializar suas atividades produtivas, foi esquartejado pelo veto presidencial sem nenhuma reação do Congresso Nacional.


Assim, não restam dúvidas de que na agricultura e na produção de alimentos a ação do Estado brasileiro também está caminhando na contramão de uma estratégia de desenvolvimento social e econômico benéfica para o país. As autoridades de Brasília estão deixando a nossa agricultura familiar sucumbir no furacão da crise. Isso é um contrassenso que precisa ser revertido antes que seja tarde demais. Em um país que necessita desesperadamente gerar empregos e combater os problemas da inflação e da insegurança alimentar, a contribuição dos agricultores familiares não pode ser desconsiderada nem negligenciada.


A defesa da agricultura familiar interessa a todos os brasileiros, do rural e do urbano. Nossas cidades concentram milhares pessoas com fome, que pagam caro pelos alimentos e muitos milhões estão sem emprego. Logo, criar oportunidades para os agricultores familiares permanecerem no campo com uma vida digna, estimulando suas atividades produtivas e enfrentando suas “múltiplas carências”(escassez de terra, água, assistência técnica, tecnologias apropriadas, crédito etc.) deve ser encarado como um dos projetos centrais para o Brasil hoje e na reconstrução do país pós-pandemia.


Portanto, ao invés de o Estado brasileiro concentrar seus esforços discursivos e orçamentários majoritariamente no apoio ao agronegócio exportador de commodities, que tem falhado fragorosamente nos aspectos distributivos, o momento também exige uma maior atenção governamental em favor da agricultura familiar, tendo em vista o seu papel estratégico multidimensional.


Os países capitalistas avançados há muito tempo têm apostado no potencial desta categoria de produtores. Nos primeiros 15 anos do século 21 o Brasil seguiu caminho semelhante, o que nos ajudou a sair do Mapa da Fome. Mas estamos retrocedendo. É urgente, então, reorientar os rumos de nossa política agrícola e alimentar colocando a agricultura familiar no centro de uma estratégia de desenvolvimento rural que nos ajude a superar a crise atual.


Joacir Rufino de Aquino é economista, é professor da UERN, membro do Instituto Fome Zero e sócio do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.


Sergio Schneider é professor da UFRGS, pesquisador 1B/CNPQ e líder do GEPAD-UFRGS.


Crédito da foto da página inicial: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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