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Foto do escritorBrasil Debate

‘O Mecanismo’ e sua leitura da corrupção

Lançada em março com oito episódios em sua primeira temporada, O Mecanismo, série da Netflix assinada por José Padilha, tem causado um razoável debate em torno de sua forma e de seu conteúdo. Por um lado, alguns sugerem que os assinantes boicotem a provedora do seriado, uma vez que a série não é fidedigna aos “fatos” que são narrados, colocando a culpa dos males do país em um partido e, mais especificamente, em um político. Outros afirmam, por outro lado, que estórias são produtos da ficção, de modo que a dramatização estar “baseada em fatos reais” não implica segui-los à risca, pois os produtores têm “liberdade” para criar.

Como se sabe, contudo, fatos são constatações e, como tais, são mediados pelas visões de mundo daqueles que constatam. As visões de mundo, também sabemos, quase nunca são ingênuas: são constituídas por teorias, opiniões, posições sociais e toda a sorte de fatores que influenciam a compreensão do acontecimento do qual se constata algo.

Seguindo essa linha, O mecanismo é revelador de uma forma de constatação dos acontecimentos que compõem a Operação Lava Jato – a saber, os episódios que permeiam a investigação e a prisão de diversos agentes públicos e privados envolvidos em fraudes de contratos de obras vinculadas à Petrobras. Não se trata de uma mera descrição de algumas cenas da vida nacional, tomadas como autoexplicativas e desconexas, mas da construção de uma narrativa que procura demonstrar suas imbricações, formando um sentido unívoco: a denúncia de um “mecanismo” trágico e nefasto que opera de modo sistêmico no conjunto da vida social e política brasileira.

Nessa figuração, os agentes públicos, os operadores e os políticos são todos corruptos e as grandes empresas (notadamente as empreiteiras) são todas corruptoras. Desse modo, importa menos que a famosa frase “estancar a sangria”, dita pelo senador Romero Jucá (MDB), apareça na série proferida pelo personagem que representa o ex-presidente Lula da Silva (PT). Afinal de contas, todos são bandidos, segundo a figuração a qual se filia a série – até mesmo parte da mídia que tenta manipular as torções do “mecanismo” segundo seus interesses. E, afinal de contas, que figuração é essa?

Trata-se de uma figuração na qual os grandes fracassos e terríveis infortúnios do Brasil estão todos na corrupção, cuja origem, conforme observa um dos primeiros delatores, em tom de deboche, data de pelo menos 1808, com a vinda da família real portuguesa ao país. Surgiu, portanto, há pelo menos dois séculos, antes da nossa Independência (1822), e abarca desde a municipalidade – figurado no problema com o cano de esgoto estourado na porta do personagem/narrador, policial aposentado, que deve pagar por fora caso queira que o serviço saia mais rápido – até as esferas mais elevadas da vida republicana.

Para combater a corrupção, segundo a visão de mundo advogada pela série, é preciso um verdadeiro sacrifício e empenho de investigadores e delegados da Polícia Federal, do Ministério Público, dos juízes etc. Todos eles, devidamente “afastados” dos grandes circuitos de poder, lutam nas brechas do sistema – mesmo que precisem usar de medidas arbitrárias e violentas. Em muitos entrechos, chega-se à afirmação da impossibilidade de eliminar a corrupção por completo e acabar com o “câncer” chamado “mecanismo”. Ainda assim, alguns continuam, num trabalho de Sísifo, lutando contra ela.

É justamente nessa compreensão de que a corrupção não tem jeito e depende de atos heroicos de uns e outros que reside um dos mais graves problemas da figuração da corrupção oferecida pela série. Isso porque ela se coaduna com a narrativa que levou ao autoritarismo brasileiro em diferentes momentos, e promove candidaturas aventureiras na eleição deste ano: a solução parece estar “fora” da política. A leitura sobre a corrupção da qual todos somos vítimas, portanto, nada tem de ingênua: ela é sorrateira e interessada.

A denúncia da série passa muito ao largo das raízes do problema da corrupção, dentre as quais, a estreiteza de nossa democracia combinada ao processo social reproduzido por meio do pequeno ou grande negócio, e descamba para uma afirmação reacionária sobre passado, presente e futuro do país. Afinal, se o “mecanismo” é uma espiral infinita, não há muitas formas para derrotá-lo. Nesse tipo de leitura, interdita-se a solução da corrupção pela via do alargamento das bases democráticas por meio de uma nova maneira de reprodução da vida social na qual a subordinação do público ao privado, pela incessante corrida da acumulação de capital, não determine nosso processo histórico.

Diante dessa sinuca de bico, restam aparentemente duas saídas: desistir e seguir com a vida (e por vezes protestar em passeatas ou batendo panelas) ou realizar o trabalho infinito de rolar a pedra até o alto da montanha para vê-la rolar novamente. O personagem/narrador até tenta seguir com sua vida, mas acaba optando pela segunda saída, tomado pelo senso de justiça e de estar do lado do bem. A mensagem é clara: se o “bem” tivesse poder, eliminaria o “mal”, pois a pedra não rolaria mais do alto da montanha.

Nestes termos, o principal problema da série não deveria estar na frase posta na boca do Lula. É claro que se trata de uma afronta, mas, segundo o roteiro, o ex-presidente, Dilma, Aécio, Temer, Cunha e tantos outros são personagens constitutivos da mesma engrenagem. Tampouco a série pode ser reduzida a uma mera narrativa binária sobre o “bem” e o “mal”, como se formas artísticas nada dissessem sobre o mundo social (ainda mais em um país no qual parte da população é formada e informada pela narrativa dramatúrgica). A questão central sobre a qual precisamos estar muito atentos está no remédio que a série fornece para combater o “câncer” e suas metástases, pois, ao contrário de atacar realmente as questões mais profundas da corrupção no país, o remédio flerta com a farsa da tragédia de outrora.

Crédito da foto da página inicial: Divulgação Netflix

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