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  • Foto do escritorAndré Luiz Passos Santos

O legado de Getúlio Vargas



Até hoje, 70 anos após sua morte, é respeitado por defensores dos direitos sociais e da autonomia nacional, tanto quanto atacado por setores conservadores

Fui incumbido pelo professor Luiz Gonzaga Belluzzo de compor este artigo sobre Getúlio Vargas, para rememorar os 70 anos de sua morte. Tarefa difícil. Não porque faltem fontes ou pontos de vista diversos, mas porque Vargas foi uma figura política – adianto que, para mim, a maior de nossa História – controversa e multifacetada.



Nascido em uma rica família de estancieiros do oeste gaúcho, Vargas formou-se em Direito e logo se engajou na política local, influenciado pela ideologia positivista. Ocupou cargos legislativos, tornou-se ministro da Fazenda e governador. Candidatou-se pela oposição, com pouca esperança, à Presidência da República em 1930, em uma eleição controlada pelo establishment.


A Crise de 1929 abalara profundamente as finanças públicas e as reservas de divisas do país, pela retração das receitas do café. Uma vez enfraquecida a República Velha, em aliança com oligarquias regionais insatisfeitas com a dominação política dos cafeicultores, Vargas liderou uma revolução que impediu a posse do presidente eleito.


Assumiu, de forma provisória, a Presidência. Inaugurou um período de atenção às demandas dos trabalhadores (um dos primeiros atos foi a criação do Ministério do Trabalho), fortalecimento da estrutura do Estado e da incipiente indústria nacional, sem contudo descurar dos interesses dos produtores rurais, sobretudo do café, produto do qual a balança comercial era dependente.


Vargas buscou modernizar as relações econômicas e sociais do país. Sua ideologia, depois chamada de nacional-desenvolvimentismo, incluía regular as relações trabalhistas, os sindicatos e fortalecer a indústria e a agricultura.


Datam destes anos de governo provisório as primeiras iniciativas de legislações de proteção ao trabalhador (ainda que de forma restrita aos trabalhadores registrados, o que ainda deixava de fora boa parte do povo). Paulatinamente, foram adotadas leis reguladoras da jornada de trabalho e ampliada a previdência social.


Implantou o câmbio múltiplo, estabelecendo taxas diferenciadas para as categorias de importação e repôs o monopólio do comércio de divisas pelo Banco do Brasil. O objetivo era baratear a importação de bens essenciais e de produção para equipar a indústria nacional, encarecendo a de bens considerados supérfluos.


A um só tempo, a medida buscava substituir bens importados por nacionais, aumentar a exportação de bens industrializados e, assim, reduzir a dependência do café, cujos preços estavam sujeitos a flutuações, o que às vezes limitava a capacidade do país de importar.


A Constituinte de 1934 instituiu o voto feminino e de todos os alfabetizados, o voto secreto, a justiça eleitoral e elegeu Vargas presidente. Criou a Justiça do Trabalho e tornou o ensino primário gratuito e obrigatório. Extinguiu a política dos governadores, contrariando o arranjo “café com leite”. Termina o governo provisório, primeira fase da chamada Era Vargas.


Iniciado o período constitucional, a instabilidade política, militar e social permanecia. Tal como na Europa, o fascismo, através da Ação Integralista Brasileira, ganhava corpo, chegando a tornar-se um partido de massas.


A esquerda reagiu criando a Aliança Nacional Libertadora, um movimento de enfrentamento ao fascismo. Ao fim de 1935, um levante comunista tomou guarnições militares em Natal, Recife e Rio de Janeiro.


O movimento não empolgou o povo, como esperavam seus líderes, e foi rapidamente dominado pelo Exército. Em resposta, Vargas decretou Estado de Sítio, concentrando em suas mãos poderes excepcionais, que utilizou para reprimir duramente os comunistas.


Em setembro de 1937, a imprensa noticiou a hoje conhecida farsa do Plano Cohen. Apoiado pelo Exército e por boa parte da alarmada elite econômica, Getúlio ampliou seus poderes, iniciando a terceira e mais obscura fase da Era Vargas, a ditadura do Estado Novo, marcada pelo fechamento do Congresso, pela intervenção nos sindicatos, pela censura e repressão de opositores, sobretudo à esquerda.


Mas também os integralistas, antes alinhados, que tentaram, igualmente sem sucesso, uma rebelião contra o governo em 1938, o que contribuiu para concentrar ainda mais poder nas mãos de Vargas. As eleições previstas pela Constituição de 1934 foram canceladas e Vargas, que não poderia disputá-las, foi mantido no Catete.


Vargas reforçou sua imagem de líder de massas, falando ao povo sem mediações, em grandes comícios ou através da Rádio Nacional, que alcançava boa parte do país.


Consolidou-se sua imagem de “pai dos pobres”, em virtude da criação do salário-mínimo, férias anuais, descanso semanal remunerado e outras leis, compiladas na CLT, decretada com grandes pompas num comício popular no 1º de maio de 1943, data que passara a ser cultuada pelo governo com desfiles e festas populares, convertida em estratégia de propaganda do regime.


Em contraponto, estabeleceu um controle ainda mais rigoroso sobre o movimento sindical e as greves e a intervenção sobre os governos estaduais.


A decantada habilidade política de Vargas foi testada em nível internacional, com a crescente hostilidade entre as potências do Eixo e os Aliados. Vargas, com destreza de estadista, acenava aos dois lados, em busca de vantagens para o Brasil.


Muitos de seus aliados simpatizavam com o nazifascismo, mas Vargas logrou obter financiamento e tecnologia dos EUA para passar a produzir aço no país. A usina de Volta Redonda foi conquistada em troca da participação militar ao lado dos Aliados na guerra na Europa. Inaugurada a usina em 1946, a dependência do aço estrangeiro foi reduzida, amenizando um dos entraves ao desenvolvimento industrial.


Ao fim da guerra, o espaço de manobra internacional se encurtou. Os EUA se voltaram para a Europa e o Japão, temendo o avanço da URSS. O Brasil, que se considerava credor da gratidão estadunidense, perdeu relevância. A desmobilização da indústria de guerra e sua reconversão e a previsível reconstrução da indústria nos países mais afetados reduziu o acesso brasileiro aos mercados.


O financiamento externo minguava enquanto o Brasil diversificava sua indústria, que ocupara espaços de mercado abertos durante a guerra, implicando a necessidade de importar bens de produção e tecnologias cada vez mais sofisticados e custosos.


A industrialização por substituição de importações – ensinou a mestra Maria da Conceição Tavares – carrega uma contradição interna. A necessidade de divisas para a importação se acentuava à medida que a indústria se ampliava mas ainda não tinha a necessária escala para competir, colocando mais pressão sobre o balanço de pagamentos e a política cambial.


Isto num momento em que muitas das divisas mantidas pelo país se tornaram inconversíveis, devido à hegemonia do dólar estabelecida no acordo de Bretton Woods, em 1944. A crise se agravou, e Vargas foi forçado a renunciar em fins de 1945. Termina o Estado Novo.


Nomeado senador, recolheu-se ao silêncio, mas fez o PTB apoiar o candidato vencedor, Eurico Dutra. Acendeu-se o movimento queremista, marcado pelo bordão “queremos Getúlio”. Ao fim do impopular governo Dutra, Vargas retornou ao poder, desta vez “nos braços do povo”, com votação consagradora. Inicia-se a quarta fase da Era Vargas, o governo democrático.


O cenário já não era tão favorável. Não havia recursos externos disponíveis para resolver os gargalos estruturais da economia, embora prometidos pelas missões estadunidenses que analisaram a realidade brasileira, culminando com a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, concluída em 1953.


Contando com financiamento das agências internacionais para os projetos da CMBEU (que não ocorreu), Vargas instituiu uma competente assessoria econômica, que legou ao país projetos setoriais e uma política integrada de planejamento, que seriam muito úteis ao seu sucessor e, de certa forma, herdeiro de sua política desenvolvimentista.


Os planos legados por Vargas permitiram que Kubitschek – que não era do PTB varguista, mas um moderado político mineiro, apoiado pelo trabalhismo – elaborasse seu Plano de Metas, que alcançou um alto nível de crescimento e sofisticação da economia. O governo JK passou à História como os “Anos Dourados”.


Em resposta, Vargas estabeleceu leilões cambiais, apertando o controle sobre as divisas, e buscou contornar resistências à ampliação do espaço fiscal. Criou o BNDE a fim de aliviar a questão do financiamento à indústria, propôs a criação da Eletrobrás e criou a Petrobrás, no rastro do movimento popular “O Petróleo é Nosso”, nacionalizando a exploração desta riqueza, para grande desagrado do novo governo republicano dos EUA, que cortou de vez as esperanças de obtenção de financiamento externo.


Logo Vargas foi sendo encurralado. A barulhenta oposição da UDN, liderada por Carlos Lacerda, bradava que o governo era “um mar de lama”, utilizando-se habilmente da mídia. A classe média crescia em insatisfação.


Vargas decidiu voltar-se diretamente para o povo, instituindo vantagens previdenciárias e dobrando o salário-mínimo no comício de 1º de maio de 1954, o que agravou os temores dos conservadores. Um desastrado atentado contra Lacerda, urdido por auxiliares próximos de Vargas (ao que se sabe sem seu conhecimento), matou um major da Aeronáutica, acendendo o pavio da revolta nos quartéis.


Sitiado politicamente e sem apoio militar, temendo sair preso do Catete, Vargas adotou um gesto extremo. Na manhã de 24 de agosto de 1954 suicidou-se com um tiro no peito.


Sua morte desencadeou revoltas espontâneas contra a mídia e a oposição, gerou enorme comoção popular e conteve as intenções estadunidenses de forçar a revisão da política de exploração mineral. Na Carta Testamento que deixou denunciava as pressões externas, as tramas antinacionais, colocando-se como um mártir das causas populares.


Seu legado é extenso, duradouro e inestimável, na política social, no desenvolvimento econômico, na construção do Estado e na melhoria das condições de vida, apesar de seu paternalismo, realçado no período autoritário.


Até hoje, decorridos 70 anos de sua morte, seu nome é respeitado pelos que o vivenciaram, os que conhecem a História e os defensores dos direitos sociais e da autonomia nacional, tanto quanto atacado pelos setores conservadores. Há quem diga, talvez com certo exagero, que Vargas salvou o capitalismo brasileiro de seus capitalistas.


A Carta Testamento, reforçando o mito de Vargas, termina dizendo:

“Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente, dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.


André Luiz Passos Santos é economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.

 

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