Publicado na Carta Maior em 9-12-2015
Michel Temer cercado por Moreira Franco e Eduardo Cunha. Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
Não foram poucos os juristas que registraram que a justificativa de Eduardo Cunha para abrir um processo de impeachment contra a presidenta Dilma é mal fundamentada: o ano de 2015 ainda nem terminou, e as contas fiscais ainda não foram sequer consolidadas, quanto mais julgadas. A manobra de Cunha para buscar apoios junto a uma oposição golpista é demais evidente para ser repisada aqui.
Fale-se o que se queira da presidenta, mas sua conduta ilibada e seu incentivo à investigação do escândalo de corrupção na Petrobrás estão acima de qualquer suspeita.
Pedaladas fiscais e escândalos de corrupção à parte, sempre foi a acusação de estelionato eleitoral a linha usada pelos derrotados na eleição presidencial de 2014 como a justificativa moral de um processo de impeachment de Dilma Rousseff que não pode se amparar em provas materiais.
Seu discurso eleitoral vitorioso deixou nos derrotados a convicção de que foram campeões morais. Afinal, ela os derrotou acusando-os de querer praticar (“cortar, cortar, cortar”) o que ela acabou fazendo. Eles não negam a acusação e inclusive defendem mais cortes do que admitiam na campanha eleitoral. No entanto, alegam que não havia alternativa para ajustar as contas públicas a não ser cortar.
Alternativa havia e ainda há, mas a questão decisiva é que cortar não era sequer uma alternativa viável para realizar o prometido ajuste fiscal, pois a economia não estava em trajetória de crescimento do gasto privado e das receitas públicas. Pelo contrário, o consumo, o investimento e as exportações ou desaceleravam fortemente ou até se contraíam em 2014. Vários keynesianos alertavam no final de 2014 que, como a deterioração das contas públicas resultava da desaceleração do PIB e da queda das receitas tributárias, uma política pró-cíclica agravaria o corte do gasto privado e consequentemente das receitas tributárias, tornando contraproducente o ajuste fiscal.
Não deu outra, embora Joaquim Levy tentasse manipular a varinha da confiança para reanimar o investimento privado. Não há fada da confiança capaz de evitar a transformação de uma “recessão de um trimestre”, como disse o mago em janeiro, em uma depressão de, talvez, um triênio.
Ao invés de admitirem o erro de realizar e insistir em uma política pró-cíclica, os arautos da redenção pela austeridade alegam que o problema, no fundo, é que Levy não tem apoio da base do governo e da própria presidente para executar os cortes necessários para resolver o problema que aprofundou. Isso só poderia ser alcançado com a formação de um novo governo com uma nova base política, que levasse adiante um programa mais profundo e estrutural de cortes, levando-os, agora, até os gastos sociais determinados pela Constituição Cidadã de 1988.
Além desses cortes da Constituição agravarem a austeridade e aprofundarem o desajuste fiscal, a ironia é que são defendidos em conjunto com a acusação de que a presidente não tem autoridade moral porque realizou um estelionato eleitoral. O problema é que nenhum partido oposicionista defendeu nas eleições presidenciais de 2014 um programa de reforma constitucional que cortasse gastos sociais. Não haveria maior estelionato da democracia do que impor esse programa depois de derrubar um governo eleito que, contraditoriamente, acusam de estelionato eleitoral por ter anunciado cortes muito menores do que os que acabou fazendo e do que, mais ainda, a própria oposição golpista propõe agora.
Estelionato maior seria se esse programa de cortes da Constituição fosse realizado pelo PMDB, que participou da chapa vencedora ocupando a vice-presidência. Se bandear de vez e por inteiro para o lado da oposição golpista e defender o impeachment apenas da Presidente Dilma, de modo a ter Michel Temer como presidente uma grande “coalizão nacional” para realizar um “ajuste fiscal” contra a Constituição Cidadã, o estelionato eleitoral do PMDB seria muito maior do que se acusa Dilma de ter feito.
Uma ponte para o passado ditatorial e para o neoliberalismo
Tamanha manobra teria um gosto antidemocrático inegável. Não apenas pelo procedimento, mas também pela substância do que é proposto. Ponte para o Futuro é o nome do documento apresentado pelo vice-presidente Michel Temer e pelo ex-ministro Moreira Franco para apreciação do PMDB em congresso em novembro de 2015. Se tornar-se a plataforma de um futuro governo de Temer surgido de um impeachment ilegítimo, o estelionato democrático é flagrante: nada da Ponte para o Futuro foi apresentado na campanha presidencial de 2014.
A substância também é contrária às bandeiras da luta democrática que Ulysses Guimarães liderou e que desembocaram na Constituição de 1988. Primeiro, embora alegue que “a solução (do problema fiscal) será muito dura para o conjunto da população”, o PMDB propõe “evitar aumento de impostos”, mas fazer “desoneração de exportações e investimentos”. Na prática, o PMDB propõe congelar a estrutura tributária brutalmente regressiva e concentrar o ajuste, portanto, nos beneficiários do gasto público, principalmente do gasto social e da previdência. Não surpreende que se proponha uma idade mínima para aposentadoria, sem considerar que os mais pobres começam a trabalhar e também tendem a morrer mais cedo. Ou seja, o novo PMDB propõe inverter o pacto social inerente à Constituinte Cidadã que foi a principal bandeira histórica e o maior triunfo do velho MDB.
Segundo, o PMDB propõe “acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação”. Terceiro, anuncia “a criação de uma instituição que articule e integre o Poder Executivo e o Legislativo, uma espécie de Autoridade Orçamentária, com competência para avaliar os programas públicos”. Sua tarefa básica seria instituir o “orçamento com base zero, que significa que a cada ano todos os programas estatais serão avaliados por um comitê independente, que poderá sugerir a continuação ou o fim do programa, de acordo com os seus custos e benefícios”.
Comitê independente? Em relação a quem? Nomeado entre os funcionários diretos ou indiretos do mercado financeiro? No fundo, como no caso do banco central independente proposto e rechaçado na última eleição presidencial (mas mencionado por Renan Calheiros recentemente), o PMDB propõe uma autoridade fiscal independente que esvaziaria o poder do Presidente e do parlamento eleito na definição do orçamento, transferindo-o para um corpo tecnocrático não eleito. Não surpreende que a proposta tenha sido escrita por Antônio Delfim Neto e um conjunto de tecnocratas neoliberais que tem ojeriza à lentidão dos processos de construção de consensos democráticos, mas que dizem que sua proposta apenas representa um “consenso” que ninguém sabe onde foi construído.
A cereja do bolo desse Comitê Independente é cuidar da credibilidade da dívida pública e “iniciar o processo de sua redução como porcentagem do PIB. O instrumento normal para isso é a obtenção de um superávit primário capaz de cobrir as despesas de juros menos o crescimento do próprio PIB…. Qualquer voluntarismo na questão dos juros é o caminho certo para o desastre.” O novo PMDB não poderia ser mais explícita quanto a quem seu programa quer agradar.
Sabemos que, como toda redução de juros e todo aumento de impostos são vetados de antemão, o ajuste proposto pelo PMDB é concentrado no corte de gasto. É difícil imaginar que a economia possa crescer dada a voracidade contracionista que caracteriza o novo PMDB. Aliás, o documento alega explicitamente que “podemos supor que a inflação vai perder força naturalmente em função da contratação da demanda agregada e da contenção dos gastos públicos”.
Como crescer? Mais do mesmo da velha estratégia neoliberal fracassada dos anos 1990: abertura comercial com aceitação de regras limitantes às políticas de desenvolvimento. Agora, é claro, em um grau ainda mais restritivo ao desenvolvimento do que na década de 1990, porque amparado não em um negociação multilateral como na Rodada Doha da OMC, mas aceitando as imposições dos acordos bilaterais liderados pelos países ricos: “o Estado deve cooperar com o setor privado na abertura dos mercados externos, buscando com sinceridade o maior número possível de alianças ou parcerias regionais, que incluam, além da redução de tarifas, a convergência de normas, na forma das parcerias que estão sendo negociadas na Ásia e no Atlântico Norte… A globalização é o destino das economias que pretendem crescer.”
Não surpreende que a Ponte para o Futuro tenha muitas palavras sobre o corte de direitos sociais, mas nada fale sobre políticas de desenvolvimento ou de uma reforma tributária progressista, sequer para reverter a agenda tributária regressiva que foi implementada pelos primeiros emedebistas a bandearem para o neoliberalismo, ou seja, os peessedebistas neoliberais da década de 1990. Estes fazem joça do nome “Social Democracia” e não convencem aos alegarem defender suas bandeiras: além de reduzirem a alíquota máxima do imposto de renda para fazer os muitos ricos pagarem o mesmo que a classe média, eliminaram o imposto sobre lucros e dividendos distribuídos, ou seja, garantiram que os proprietários de capital não pagassem imposto de renda sobre seus rendimentos pessoais.
Agora, o objetivo é reduzir custos salariais, fiscais e previdenciários para melhor “integrar” as empresas à globalização. Quanto aos direitos trabalhistas, caberia “permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais”. Nada mais velho, tão PSDB anos 1990, do que o novo PMDB.
Não surpreende que até no vocabulário o PMDB tucanou. Privatizações são, agora, necessárias para “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias”.
O que fazer?
Se a presidenta Dilma pode ser acusada de estelionato eleitoral pelos seus próprios eleitores, o que dizer do programa secreto que o PMDB lançou exatamente na semana do primeiro aniversário das eleições de 2014? Não é apenas um “freio de arrumação”, mas um antípoda do programa da chapa comum na qual Temer foi eleito e, pior ainda, uma total reversão do pacto social enraizado na Constituição de 1988.
É por isso que lutar contra o impeachment da Presidenta Dilma é uma palavra de ordem para todos aqueles comprometidos com a ordem democrática, e não apenas pelo respeito da ordem democrática: o projeto do novo PMDB é sepultar a própria ordem social e econômica da Constituição de 1988, “adaptando-a” de vez ao neoliberalismo quando, no mundo inteiro, o projeto neoliberal é um morto-vivo que frustrou todas suas promessas. Para quem já conheceu o velho MDB e até o PMDB dos anos 1980, a decadência dos valores da democracia política e social que embalaram o movimento democrático brasileiro nos anos 1970 é deprimente. O corpo do Dr. Ulysses nunca foi encontrado, mas Michel Temer, Eduardo Cunha e Moreira Franco querem sepultar sua alma.
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