O golpe de maio de 2016 não surgiu de repente e do nada. Está sendo preparado e alimentado há quase dois anos, por uma campanha de sabotagem dos vários agentes da oposição, que não se resumem aos partidos políticos.
Mas o golpe não foi apenas a deposição da presidenta. E, nesse sentido, ele vem de ainda mais longe e de mais fundo. Ele é um capítulo importante, revelador, de um movimento persistente, às vezes subterrâneo, às vezes escancarado. É o movimento pela mudança do regime político brasileiro – a democracia representativa presidencialista que se consolidou com a Constituição de 1988.
Os conservadores não escondem que desejam acabar com a Constituição. Segundo as associações empresariais e seus economistas, a Constituição “não cabe no orçamento do Brasil”. O que não cabem, sempre deixam claro, são as conquistas sociais e trabalhistas, bem como as vinculações orçamentárias como os gastos com saúde e educação. Mas não é apenas isso que se quer revogar: é o direito político fundamental dessa república, o sufrágio universal.
Revogar o sufrágio universal, eliminar as eleições? Não, não se trata disso, seria pouco realista, pelo menos por enquanto. Mas algumas restrições são cogitadas: voto distrital, voto voluntário. Também não se trata de eliminar as eleições – pelo menos como antídoto as já longínquas lembranças da ditadura servem. Não é isso. O que está em marcha são seguidos experimentos, homeopáticos, visando a tornar as eleições irrelevantes.
Tornar as eleições irrelevantes – guardemos essa ideia. Eleições seguiriam existindo, mas seu efeito seria inócuo. Ou seja, trata-se de esterilizar o poder do voto. É uma receita velha dos neoconservadores, já anunciada pela famosa Comissão Trilateral em 1972: o Estado está sobrecarregado pelas demandas populares, o capitalismo está sendo inviabilizado pela democracia, resta apenas o caminho de ‘disciplinar’ a democracia submetendo-a a regras superiores, isto é, definidas por seres superiores, os guardiães do mercado e da oligarquia.
Um exemplo dessa esterilização do poder do voto? Quando se fala em independência do Banco Central ou “despolitização” de agências estatais, o que com frequência se esconde sob as palavras é o objeto da “independência”: essas instituições reguladoras da vida econômica se tornariam independentes… dos representantes políticos escolhidos pelo voto.
Ou seja, o Congresso e principalmente a Presidência não opinariam sobre coisas como taxas de juros e política monetária e creditícia.
O caminho da direita tem sido esse, em cada quarteirão do país e em cada episódio político. O que significam as campanhas para que procuradores elejam o Procurador-Geral da República, prerrogativa da Presidência? Agora, até a polícia federal quer que seu diretor-geral seja eleito – ou seja, a polícia, elemento essencial do Estado, teria sua direção escolhida pela corporação dos delegados.
Acaba eleição direta, volta colégio eleitoral e comissão dos ‘homens bons’
Tem mais. Governadores, prefeitos, ministros e presidentes passam a ser assediados pelo Ministério Público e por sua aliança escandalosa com a mídia, criando investigações paralelas, vazamentos e julgamentos públicos, linchamentos e destruição de reputações.
Agora, chegamos ao episódio do impeachment, revelador claro do processo em andamento. O Congresso foi transformado em colégio eleitoral, para decretar a cassação da presidenta eleita e a escolha de outro presidente. Acabou a era da eleição direta. Agora, temos eleição pelo colégio eleitoral, o colégio daqueles “notáveis picaretas” da Câmara Federal.
Condenação da Presidência sem crime – na verdade, mesmo os golpistas reconhecem que a motivação maior, a razão para o afastamento é a falta de apoio dos políticos. Pedalada fiscal é pretexto ridículo – que serviria para cassar mandado de vários governadores tucanos, por exemplo. E esta “falta de apoio político” foi cuidadosamente construída nesses quase dois anos de cerco e sabotagem, protagonizado pelo MP, PF, partidos de oposição, associações empresariais, igrejas evangélicas e mídia. Para falar apenas dos que estão dentro do país.
É por isso que dizemos que o que está em andamento é a mudança de regime. Já não temos uma democracia representativa presidencialista, mas um executivo estritamente escolhido por via indireta e sob os cuidados de uma “comissão supervisora” ou “de controle”, constituída por esses agrupamentos conservadores, as fortalezas do capital.
Agora, as forças progressistas têm diante de si o desafio de derrubar o governo ilegítimo. Mas, mais do que isso, de contestar essa mudança de regime, que já se enraizou nas práticas políticas do país. Isso pode inclusive implicar em novas atitudes dos partidos de esquerda com relação às eleições para o Executivo.
No quadro que temos, é impossível deixar de concorrer – isso tem impacto na eleição dos vereadores e deputados, senadores. Mas pode ser conveniente empenhar a campanha em uma denúncia do sistema e na proposta de sua derrubada. Por exemplo: o candidato a prefeito pode fazer de sua candidatura uma denúncia desse cerco censor. O que aconteceria se ele dissesse isto: “Se você votar em mim, vote também em vereadores de partidos que me apoiam. Se votar em mim para prefeito e para vereador escolher alguém que se opõe a meus programas, não quero seu voto, porque vou decepcioná-lo”? Essa é uma possibilidade. Até porque é verdadeira: um executivo eleito com dois terços da Câmara ou Congresso sabotando?Tem grande chance de trair ou de cair.
Frente de esquerda: urgente e difícil, difícil e urgente
Um outro desafio é a constituição de uma frente de esquerda. Primeiro, para derrubar o governo ilegítimo. Esse é o lado “destrutivo” da frente: contra quem? Mas precisa ter um ‘segundo’ termo, propositivo, programático. E esse precisa ser bem pensado. Talvez seja o caso de recuperar a inspiração dos cartistas ingleses, aqueles do século XIX. Um movimento por uma nova Carta do Povo. Não apenas uma Constituinte, mas também, e principalmente, uma lista de reformas de base, essenciais para esboçar o desenho de um novo país, um novo modelo de vida política: reforma tributária progressiva, reforma agrária e urbana, reforma política e limites para o financiamento privado das campanhas.
Talvez outras reformas se somem a essas. Por exemplo, uma “reforma agrária do ar” (das concessões de rádio e TV). E uma reforma da representação trabalhista: o direito dos trabalhadores à organização no local de trabalho, com acesso às informações da empresa. Não pode ser uma lista grande, mas tem que ter os alicerces de um novo pacto, popular e progressista.
A frente de esquerda é algo difícil de construir. Não pode ser uma espécie de versão ampliada do PT. Até porque o PT está hoje ainda mais cortado por divisões e tendências, explícitas ou não. E porque sua direção perdeu qualquer chance de promover alterações, sobretudo depois que resolveu abafar qualquer mudança, no último congresso do partido. A frente precisa ser ousada, agressiva, inovadora. Ao mesmo tempo, precisa ser muito, mas muito flexível e abrangente, incorporando a diversidade das oposições populares.
Crédito da foto da página inicial: Elza fiúza/ABr
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